FONTE: PIB
Nos últimos anos, a presença do Exército no interior das Terras Indígenas situadas na chamada “faixa de fronteira” da Amazônia brasileira se intensificou por meio da instalação de pelotões e de operações de treinamento e vigilância. Isso configura uma nova situação, resultado do encontro de dois processos que ocorreram no Brasil nas últimas décadas: a priorização geopolítica da fronteira amazônica pelas Forças Armadas e a efetivação dos direitos indígenas inscritos na Constituição Federal de 1988, sobretudo os territoriais, os quais resultaram no reconhecimento pelo Estado – e demarcação – de terras indígenas extensas e contínuas na faixa de fronteira internacional. O relacionamento entre militares, sobretudo do Exército, e indígenas, nessas circunstâncias, acarretou alguns conflitos nos últimos anos e uma inédita tentativa de regulamentação de conduta de militares designados a servir nessas unidades.
Como proceder às consultas prévias com comunidades indígenas que vivem em locais pretendidos pelas Forças Armadas para implantarem suas bases (pistas de pouso, pelotões, mini-centrais hidrelétricas, etc)? Uma vez implantadas, como regulamentar os efeitos socioambientais decorrentes do seu funcionamento? E com respeito às manobras de treinamento e vigilância? São apenas alguns exemplos de questões concretas que suscitaram o debate.
Resistência às demarcações
Durante os anos que precederam a promulgação da Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas, especialmente o Exército, dedicaram esforços para evitar que sobreposições desse tipo se efetivassem, se opondo à demarcação de Terras Indígenas extensas e contínuas na faixa de fronteira. Essa atitude persistiu mesmo depois de promulgada a Constituição. Do ponto de vista doutrinário, a questão foi superada com a demarcação da TI Yanomami (declarada em 15/11/1991 e homologada em 25/05/1992), precedida por uma série de pareceres elaborados por juristas importantes e técnicos de vários ministérios, além da Secretaria de Assuntos Estratégicos e do ministro-chefe do gabinete militar da época. Afora os governadores dos estados de Roraima e Amazonas, afetados pela demarcação da TI Yanomami, a opinião geral foi de que não havia incompatibilidade entre a presença militar e a demarcação da Terra Indígena ou riscos à segurança nacional. Essa posição foi confirmada em 1999 quando, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, o general Schroeder Lessa, então comandante militar da Amazônia, afirmou aos parlamentares presentes que as Terras Indígenas não configuram obstáculo às ações militares em regiões de fronteira.
Apesar disso, as Forças Armadas persistiram em reforçar suas prerrogativas e preocupações históricas e conseguiram que o presidente Fernando Henrique Cardoso promulgasse o Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002 – o qual dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas Terras Indígenas, garantindo-lhes a liberdade de trânsito, a autonomia para a instalação de infra-estrutura e a implementação de projetos.
Nesse contexto, lideranças indígenas e organizações da sociedade civil reiteraram a necessidade da criação de um código de conduta que regulamentasse a situação. A tese foi levada ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Justiça, acatadas pelo Gabinete de Segurança Institucional da presidência, o que resultou em uma série de reuniões – batizadas “Diálogo de Manaus” – as quais antecederam a definição dessas normas, concretizadas pelas portarias n° 20, do Exército (02/04/03), e sua subseqüente, n° 938, do Ministério da Defesa (17/10/03), que estendeu os efeitos da anterior a todas as Forças Armadas.
Apesar do avanço que representou a aceitação do mérito da questão e da promulgação de uma regulamentação, não foi constituída uma comissão interministerial voltada a fiscalizar a aplicação desse termo de conduta, trazendo dúvidas quanto à aplicação prática das medidas acordadas entre os diferentes atores envolvidos na questão.
Código de conduta
A situação da presença direta de bases permanentes do Exército em regiões de fronteira na Amazônia brasileira é resultado de um longo processo de re-priorização geopolítica do Estado Nacional, iniciado em meados do século passado, com resultados mais visíveis no terreno a partir da década de 1970.
Na história republicana – para não remontar às expedições do início da colonização e à política pombalina que implantou no século 18 um “colar” de fortificações nos limites amazônicos brasileiros – as modalidades de afirmação da soberania nacional variaram. Durante algumas décadas do século passado, por exemplo, vigiu o trinômio FAB-Missões-Índios, cabendo à Aeronáutica apoiar a obra civilizadora das missões religiosas instaladas para aldear e catequizar os índios, eles próprios como guardiões da fronteira. Para tanto, foram construídas pistas de pouso nessas regiões. No período pós 1964, o lema “integrar para não entregar (a Amazônia)” foi a base ideológica para o Plano de Integração Nacional – com a construção de obras de infra-estrutura e a concessão de benefícios fiscais aos investidores privados – que uniu objetivos econômicos às preocupações geopolíticas, para ocupar o que era chamado de “vazio demográfico”, desconsiderando a ocupação indígena.
Na década de 1980, o Projeto Calha Norte deu novo fôlego ao viés militar dos planos de ocupação da Amazônia brasileira, apesar da retórica oficial de que não se tratava de um projeto meramente militar. Seu principal objetivo foi a instalação de pelotões de fronteira que servissem como embriões de novos povoados, voltados a vivificar as fronteiras e garantir assim a soberania brasileira, especialmente ao norte da calha do rio Amazonas, considerada virtualmente mais ameaçada por forças externas.
Faixa de fronteira
Nas Américas, os estados coloniais e depois nacionais se sobrepuseram à ocupação anterior de milhares de povos indígenas e, segundo padrões diferenciados, absorvem a sua ocupação atual. De um modo geral, a ocupação colonial do continente se deu das regiões costeiras para o interior. Na Amazônia, ela se estabeleceu a partir das terras baixas. O controle sobre a foz do Rio Amazonas permitiu a portugueses e brasileiros um acesso mais fácil à imensa extensão territorial abrangida pelos leitos navegáveis dele e de seus formadores e afluentes, razão pela qual mais da metade da bacia amazônica acabou incluída no território nacional.
No processo de ocupação do interior, grupos indígenas foram historicamente escravizados ou cooptados, outros massacrados ou mortalmente infectados, muitos fugiram para as terras mais altas, acima das cachoeiras e alguns ainda hoje não chegaram a ser diretamente alcançados. Não é de estranhar que a ocupação indígena seja tanto maior onde menor tenha sido a penetração colonial. Assim como é de se esperar que a ocupação indígena permaneça ou prevaleça em regiões remotas, fronteiriças, como as terras mais altas da região amazônica.
O Brasil tem 16.886 quilômetros de fronteira terrestre com dez países da América do Sul. Somente a China e a Rússia têm maior extensão que essa. Elas estão definidas em tratados bilaterais com todos os vizinhos, encontram-se demarcadas e são internacionalmente reconhecidas. A faixa de 150 quilômetros ao longo da linha de fronteira terrestre é constitucionalmente definida como de especial interesse para a defesa nacional e envolve áreas pertencentes a mais de 500 municípios de 11 estados brasileiros. Aí estão cidades, estradas, rios, posses e assentamentos, propriedades privadas rurais, terras públicas com diferentes destinações e, inclusive, terras indígenas.
Existem 185 terras indígenas situadas na faixa de 150 km da fronteira em todo o País, 34 das quais com parte de seus limites colados na linha de fronteira. Do total, 75% encontram-se demarcadas e registradas em cartório. A demarcação das terras indígenas situadas em faixa de fronteira é uma providência fundamental, entre outras, para a regularização da situação fundiária, fator relevante para garantir estabilidade e evitar conflitos em regiões de fronteira. A indefinição de limites, a ocorrência de invasões e de disputas pela terra, não apenas quando se trata de terra indígena, constitui uma fragilidade que desfavorece a política de fronteiras.
De Norte a Sul do Brasil, há 45 povos indígenas que vivem em território brasileiro e em território de países vizinhos. A construção política das fronteiras terrestres não se pautou pela morfologia pluriétnica da ocupação indígena nesses territórios. Fundamentou-se muito mais na presença militar ou missionária, com base no princípio da ocupação colonial efetiva, que recortou povos e territórios.
Porém, freqüentemente, as relações construídas entre as frentes de colonização e as “lideranças” ou intermediários indígenas locais foram cruciais em muitos casos para caracterizar a efetividade da própria presença colonial e implicaram a inclusão (ou exclusão) das terras ocupadas por esses grupos. Essas relações continuam sendo relevantes no exercício da soberania dos estados nacionais, assim como para a implementação de quaisquer políticas públicas nessas regiões. A qualidade dessas relações é um fator indissociável da qualidade dessas políticas.
Não há registro histórico de conflitos fronteiriços entre o Brasil e os seus vizinhos que tenha tido povos ou terras indígenas como referência central. Assim como não há precedente de grupos indígenas no Brasil que tenham pretendido vincular-se a algum outro país ou reivindicar estado próprio. A expectativa continuada dos povos indígenas é pela demarcação das suas terras e pela implementação de políticas de seu interesse pelo estado brasileiro. E há o caso dos Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, que receberam do próprio Exército brasileiro, ainda no século 19, um extenso território contínuo na fronteira como reconhecimento do seu apoio durante a Guerra do Paraguai. Vale também mencionar a Comissão Rondon de Inspeção de Fronteiras do Norte amazônico, que, no ano de 1927, recomendava a muitas aldeias e chefes indígenas que visitava que se fixassem em território nacional, buscando persuadi-los com promessas de assistência por parte do Estado brasileiro.
Intercâmbios transfronteiriços
Mas a fronteira não é apenas uma linha imaginária politicamente acordada para estabelecer limites entre territórios nacionais. Por ela transitam pessoas, mercadorias e ilícitos. Além da situação dos povos indígenas que vivem dos dois lados da linha, há brasileiros (e vizinhos) que vivem além (ou aquém) dela, familiares e amigos, comerciantes e turistas. Com fronteira plenamente reconhecida, vivendo em paz com todos os seus vizinhos há mais de um século e diante do avanço democrático ocorrido na América do Sul nos últimos vinte anos, é de se esperar que essa linha enseje políticas de aproximação e integração, valorizando o intercâmbio de idéias, manifestações culturais e produtos. Isto vale para índios e não índios, brasileiros e demais sul-americanos, residentes ou viajantes.
E, ainda, a fronteira é um espaço suscetível de incidentes. Passam por ela produtos falsificados, dinheiro ilícito, drogas, doenças, armamentos traficados, criminosos contumazes e imigrantes ilegais. Via de regra, essas conexões criminosas ocorrem nas cidades fronteiriças e se utilizam das vias de transporte entre os países, mas também podem se utilizar de qualquer área de fronteira em que encontrem condições mais favoráveis. Raramente ocorrem em terra indígena ou envolvem pessoas indígenas.
Em tempos de paz, os incidentes de fronteira são de natureza tipicamente policial. Ocorrem em qualquer parte do(s) território(s) nacional(ais). Confrontam a ordem jurídica e a autoridade do Estado, mas não ameaçam a soberania política ou a integridade do território nacional. São questões afetas à política para as fronteiras e não propriamente à defesa militar; demandam repressão policial e não guerra convencional.
Índios e militares
As mazelas institucionais da Funai e de outros órgãos com competências afetas às demandas indígenas não justificam a interveniência militar na política indigenista. O conhecimento atual sobre os diferentes povos, com milhares de comunidades com localização definida, a dimensão das terras já reconhecidas, com recursos naturais, patrimônio cultural, serviços ambientais, diversidade biológica e conhecimentos tradicionais associados, impelem a sociedade e o Estado Nacional a buscar respostas mais consistentes.
Não se trata de ignorar as relações históricas acumuladas entre militares e índios, que levaram as Forças Armadas a incorporar a questão indígena à sua visão estratégica, o que é um mérito a ser perseguido por outras instituições. Das guerras coloniais ao indigenismo tutelar, é inegável, para o bem ou para o mal, a influência militar sobre a política indigenista. Porém, ainda há vivas seqüelas do período histórico mais recente em que essa influência se traduziu em subordinação, na ditadura militar e no governo Sarney, em que os conflitos sobre direitos e terras indígenas se multiplicaram.
Também não se trata de minimizar a importância e a extensão das relações atuais entre índios e militares, sobretudo na parte amazônica da faixa de fronteira. Há pelo menos trinta anos, o Exército vem procedendo a transferência de unidades com infra-estrutura, equipamentos e efetivos de outras regiões do Brasil para a Amazônia, que no conjunto atingirão logo mais um total de 25 mil homens. Outro mérito seu: a ênfase estratégica na Amazônia, que por muitos motivos não militares é, mesmo, altamente estratégica.
Assim como vem aumentando a presença militar em diversos municípios situados em regiões de fronteira, o Exército vem implantando dezenas de pelotões em terras indígenas nessas regiões. Mesmo dispondo do poder convocatório, trata-se de um trabalho penoso e dispendioso, com todos os ônus da transferência e permanência de contingentes em regiões remotas, desprovidas de infra-estrutura e condições favoráveis de assistência, dependendo de abastecimento por via aérea.
Pode ser que a atual presença militar em terras indígenas, assim como em outras áreas, ainda não seja suficiente para a estratégia de defesa nacional que se pretende. Está prevista a instalação de mais unidades militares permanentes em terras indígenas situadas na faixa de fronteira . É o que dispõe um decreto presidencial recente (nº 6.513 de 22/07/2008, publicado no DOU no dia 23/07/2008, seção 1, pg. 01), que prevê a apresentação de um plano do comando do Exército a ser submetido pelo Ministério da Defesa à aprovação do Presidente da República num prazo de 90 dias.
Esse decreto tem uma motivação muito mais política, de dar resposta concessiva a segmentos anti-indígenas, do que para atender necessidades da defesa nacional. É discriminatório, porque faz supor que as terras indígenas na fronteira têm implicações para a segurança nacional que outras áreas não têm, o que é uma farsa. Além disso, não há nada que indique a necessidade de pelotões em qualquer terra indígena, o que acabará constituindo uma distorção da própria política de defesa, com desperdício de recursos públicos que certamente seriam mais necessários para outras demandas da própria defesa ou de outras políticas, inclusive a indigenista.
Além do mais, a forma e a intensidade do estabelecimento de unidades militares em terras indígenas, quando for o caso, têm outras implicações que merecem atenção e o estabelecimento de regras, mecanismos de monitoramento e mediações institucionais adequadas para resguardar os direitos indígenas e dirimir situações de conflito de interesses. Antes que o debate ganhe contornos puramente ideológicos, trata-se de apontar, a título de exemplo, algumas questões concretas que merecem a atenção daqueles que prezam as prerrogativas do Estado Democrático de Direito. Quais são os critérios que regem a escolha dos locais de instalação das unidades militares? Quando os locais pretendidos pelo militares para a instalação de um pelotão ou de uma pista de pouso coincidirem com a existência de comunidades indígenas, como realizar uma consulta prévia informada? Quais as mediações adequadas para que tais consultas respeitem a organização social e formas de comunicação eficazes, o que implica, em muitos casos, a necessidade de tradução das justificativas em línguas nativas? Uma vez definidos esses locais, via de regra colados a comunidades já existentes em áreas remotas, quais as regras para a utilização de recursos naturais (água, pedra, areia, etc) e de mão-de-obra locais para a construção da infra-estrutura? Não seriam desejáveis estudos prévios de impactos socioambientais? Uma vez instalada a infra-estrutura, quais as regras de convivência entre os militares dos pelotões e as comunidades locais?
A proximidade física entre pelotões e aldeias potencializa a ocorrência de incidentes nas relações entre militares e índios. Por exemplo, quando são explorados locais sagrados com a explosão de rochas para se obter brita para a pavimentação de pistas de pouso, ou corrompidas paisagens e fontes de água em busca de areia; ou em operações de campo realizadas sem aviso prévio da população civil. Ou quando soldados se utilizam, sem prévia autorização, de alimentos coletados em roças indígenas durante exercícios de sobrevivência na selva. Ou quando ocorrem relações sexuais entre soldados e índias, consentidas ou forçadas, gerando ressentimentos e nascidos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais.
Portanto, o como e o onde dessa presença militar em terras indígenas é altamente relevante para essas relações, para que elas se desenvolvam em condições favoráveis e consistentes com o objetivo de defesa nacional, que também inclui a segurança e a confiança dos índios. Certamente, não são implicações estranhas aos comandantes militares, mas ainda há muito que se pode fazer, e corrigir, para que se evitem esses incidentes e se potencialize a dimensão mais positiva da relação.