da Redação
Durante todo o mês de junho, Brasília viu mais de mil indígenas, de 50 nações diferentes, chegarem de diversas partes do país para defenderem os seus direitos constitucionais, todos colocados em risco pelo PL 490 e seus destaques aprovados na CCJ, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, sem audiência pública, e que na prática anula todas as demarcações de territórios indígenas a partir de 1988, o pernicioso marco temporal, além de permitir o uso das terras para exploração do Estado sem permissão dos donos da terra, e outras anomalias jurídicas capazes de retirar de uma hora para outra os territórios reconquistados à custa da morte de centenas de lideranças e nações inteiras, como os Xokleng, uma etnia quase dizimada no século passado, e que segue na luta por sua existência em Santa Catarina, agora alvo de uma decisão no julgamento da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ pelo STF, de quem se espera um ato de justiça com a história deste povo, e consequentemente, criando uma jurisprudência capaz de derrubar qualquer tentativa de avanço do famigerado PL 490 no Congresso
É importante ler o que dizem os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Quaisquer propostas vindas do legislativo ou executivo, que não respeitem o artigo 231, são inconstitucionais. E qualquer ato que impeça a defesa dos indígenas, pelo artigo 232, também é ato inconstitucional. É o que ocorre com o PL 490, aprovado recentemente a toque de caixa pelos deputados na Comissão de Constituição e Justiça, à espera do plenário da Câmara, depois ao Senado e sanção presidencial. O Projeto de Lei 490/2007 é coisa antiga, e permite ao governo tirar a posse de áreas demarcadas há décadas. Ele altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e atualiza o texto da PEC 215 que retira dos indígenas direitos assegurados pela Constituição de 88, como a posse permanente de suas terras e o direito exclusivo sobre seus recursos naturais. Portanto, a agressão é também ao meio ambiente, pois viabiliza a legalização automática de centenas de garimpos nas TIs, hoje responsáveis pela disseminação da COVID-19, a contaminação por mercúrio, a destruição de nascentes, de rios inteiros e o desmatamento.
Depois de 521 anos, povos originários seguem roteiro de exploração e morte imposto pela sociedade brasileira
Dos 6 milhões de indígenas habitantes desta parte da América, hoje Brasil, restaram pouco menos de 1 milhão. Mas os 5 milhões assassinados, escravizados até a morte, estuprados em suas aldeias, infectados por vírus e bactérias, expulsos de seus territórios, não desapareceram da noite para o dia. São 5 séculos de uma morte diária, a cada retirada de um direito, a cada voz silenciada pelos poderes constitucionais.
Portanto, acima de questões ideológicas ou políticas de interesses dos não-indígenas, ou qualquer tese de desenvolvimento econômico, está a questão humanitária e do direito à posse original da terra, uma defesa amplamente favorável em favor dos povos tradicionais em qualquer corte internacional, como foi o caso dos Xukuru do Ororubá, no agreste de Pernambuco, que obtiveram uma vitória histórica, quando o governo brasileiro depositou na conta da Associação Xukuru, que representa quase 12 mil pessoas de 24 aldeias, uma indenização de US$ 1 milhão. O povo Xukuru conquistou o direito a essa indenização por reparações históricas após condenação do governo brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Há 435 terras indígenas regularizadas no país e 231 processos demarcatórios paralisados, com 536 pedidos indígenas de constituição de grupos de trabalho para identificação de terras tradicionais. A paralisação dos processos de demarcação na FUNAI decorre de ações judiciais propostas por ocupantes não-indígenas, e que pleiteiam a posse da terra indígena que já ocupam ilegalmente.
Julgamento da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ será pá de cal na tentativa de aprovar o marco temporal
O Supremo Tribunal Federal dará início nesta tarde de 30 de junho, ao julgamento da ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, e refere-se à TI Ibirama-Laklãnõ, território onde vivem também os povos Guarani e Kaingang.
Com o status de repercussão geral, o que significa que a decisão será o Norte para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça sobre procedimentos demarcatórios, anulando antecipadamente qualquer tentativa de inclusão do marco temporal. Em 2020, o ministro Edson Fachin suspendeu, até o final da pandemia da Covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo Supremo.
O marco temporal é uma interpretação defendida pelos interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. Com ele, os indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Portanto, desconsidera expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas antes de 1988 (indígenas não podiam entrar na Justiça de forma independente), além de anular tudo o que foi conquistado e retomado depois de 88.
O julgamento estava suspenso por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes. Apenas o voto contra o marco temporal do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado. Outro pedido de vistas pode adiar por mais tempo a decisão. A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.
Povos indígenas mobilizados por todo o Brasil
Neste momento, milhares de indígenas se mobilizam pelo país inteiro. Somam-se aos povos reunidos na Praça dos Três Poderes, os maracás de 900 indígenas Pataxó do Extremo Sul da Bahia, em um bloqueio total na BR 101, próximo ao distrito de Monte Pascoal, já nas primeiras horas desta quarta-feira 30 de junho, junto com os cantos e a energia para sensibilizar o poder judiciário na defesa de seus direitos, em pedágios, em barreiras, com atos em São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis, Natal, Curitiba, Chapecó SC, Araguari, Mauá SP, Campinas, Rio de Janeiro, Guaíra PR, Salvador BA, Joinville SC, Maquine RS, Santa Maria RS, T.I. Serrinha, Joaquim Gomes AL, TI Pataxó Sul da Bahia, TI Pataxó Hãhãhãe Camacã, TI Tupinambá Ilhéus, Iraí RS, Espírito Santo Povos Tupinikim e Guarani, Jataizinho PR, Avaí SP Ti Araribá, TI Maraiwarsete, Aldeia Palmeirinha PR, Mangueirinha PR, Caarapo MS, Ubatuba SP, Tocantinópolis TO Povo Apinajé, Dourados MS, Amambai MS, Naviraí MS, Ponta Porã MS, Taquaperi MS, Paranhos MS, Tacuru MS, Sassoro MS, Iguatemi MS, Eldorado MS e por todos os territórios dos povos originais desta terra.