Dez meses depois da primeira visita da Amazônia Real, em março do ano passado, os quilombolas continuam com falta de fornecimento de água potável, apresentam constantes doenças de pele e pulmonares, sobretudo em crianças e idosos, e eles não conseguem dialogar com representantes da Hydro Alunorte. O poder público é ainda ausente. Mas tão logo a contaminação das águas pluviais e dos rios foi confirmada, as famílias deixaram de vender a produção da agricultura. A ajuda financeira que a multinacional começou a pagar a outros moradores da região de Barcarena, no nordeste do Pará, poderia reduzir o sofrimento.
“A gente nunca recebeu água e agora ficamos de fora da entrega dos cartões”, lamenta a agricultora Odilene Raiol, 39 anos, da comunidade Cupuaçu/Boa Vista. Caminhando por entre poças e com os pés sujos de terra, Odilene faz questão de mostrar à reportagem o poço do qual não apenas ela, mas outras famílias quilombolas tiram água. A borda do reservatório estava cheia de plantas e a água é trazida de forma tradicional, com balde, mas também por meio de uma bomba.
Sem esgoto, sem escola, sem posto de saúde, resta aos quilombolas a convivência forçada com a água contaminada. Para preparar alimentos, a agricultora utiliza o girau feito com tábuas de madeira. O espaço aglomera talheres, pratos, panelas, roupas e as garrafas pet usadas para guardar a água trazida pelo encanamento, mas que está longe de servir para consumo. “Às vezes, a água chega limpa, outras barrenta ou com uma cor mais avermelhada”, explica ela, enchendo uma garrafa. Indagada se bebe a água, Odilene devolve com outra pergunta: “Tem outro jeito?” Para ela e os quilombolas, não tem.
Dois laudos do Instituto Evandro Chagas (IEC), de 22 de fevereiro e de 28 de março de 2018, indicam a contaminação por rejeitos de alumínio e ainda o lançamento de efluentes tóxicos (alumínio, ferro, arsênio, cobre, mercúrio e chumbo) no meio ambiente por parte da Hydro Alunorte. Após fortes chuvas entre os dias 16 e 17 de fevereiro, mananciais ficaram contaminados, mas até hoje não se sabe se houve transbordamento ou rompimento da bacia de resíduos sólidos da mineradora no Pará.
Parecer técnico pago
A mineradora insiste em negar o crime ambiental. Primeiro, contratou a empresa SGW, que não apenas dizia que a área dos Depósitos de Resíduos Sólidos (DRS1) não havia transbordado, como o estudo desacreditava os laudos do IEC. Em 13 de dezembro último, a empresa tornou público o relatório de outra consultoria contratada por ela. A Atecel, entidade de direito privado, e fundada em 1967 por professores da antiga Escola Politécnica da Universidade Federal da Paraíba, é hoje vinculada a professores da Universidade Federal de Campina Grande. No relatório, a Atecel relaciona as empresas para as quais já prestou serviços, como Petrobrás, CSN, Votorantim, Braskem, Alcoa, Eletrobrás, além das agências ANA e Aneel. O estudo de 67 páginas afirma que não houve transbordamento de rejeitos e garante a segurança no gerenciamento de efluentes por parte da Alunorte, mesmo em períodos de extrema chuva.
O objetivo da mineradora é se contrapor ao embargo que sofre desde 28 de fevereiro de 2018 da Justiça. Nessa data, o Ministério Público Estadual do Pará (MPPA) proibiu a refinaria de usar o DRS2 por irregularidades na licença de operação e mandou a empresa reduzir a produção pela metade para evitar um novo vazamento. A multa estipulada é de R$ 1 milhão por dia por descumprimento da medida cautelar. Em valores nominais, se a Alunorte acumulasse as multas por um ano inteiro, esse total representaria apenas 6% do faturamento anual (a receita em 2017 foi de R$ 5,62 bilhões para uma produção de 6,4 milhões de toneladas de alumina)
Em respostas a reportagem, a Hydro Alunorte informou que os depósitos DRS1 e DRS2 têm atualmente a capacidade de suportar 56 milhões de toneladas de resíduos seco. Contudo, a empresa não informou a quantidade de resíduos que há hoje em cada um dos reservatórios. Eles esclareceram, apenas, que os depósitos são chamados de “bacias de efluentes” e utilizados também para coletar efluentes, incluindo água da chuva.
O sistema de coleta de efluentes guarda semelhanças com as barragens de Brumadinho (da Vale do Rio Doce) e Mariana (da Samarco, empresa formada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton), que retinham resíduos sólidos da extração do minério de ferro e causaram os dois maiores crimes ambientais na história do País.
Até 2009, o capital da mineradora Alunorte tinha 34% das ações da empresa norueguesa Norsk Hydro ASA, da qual o maior acionista é o governo da Noruega. A maior acionista à época era a Vale. Em 2010, a Norsk anunciou um acordo de troca de ações com a Vale e passou a ter o controle de 91% das ações da refinaria de alumina.
As falhas nos cadastros das indenizações
A Alunorte diz estar cumprindo as cláusulas do Termo de Ajuste de Conduta (TAC), assinado em junho de 2018. O documento, fruto de entendimentos do MPPA, do Ministério Público Federal (MPF) e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), existe para adequar condutas, consideradas ilegais, por qualquer empresa que atua no território brasileiro. No caso de Barcarena, o TAC determina que a multinacional norueguesa faça o cadastro das famílias que vivem na bacia hidrográfica. O cadastro deveria ter sido realizado até 5 de outubro para que as pessoas recebessem R$ 670 para comprar água e comida.
Três meses depois ainda estão sendo entregues os primeiros lotes dos cartões, que darão acesso a compensação. A Hydro Alunorte teve que reservar R$ 65 milhões para o pagamento das indenizações. Pela falta de informação adequada, em 7 de dezembro, milhares de pessoas foram receber a indenização, mas não havia dinheiro para todos, já que o pagamento seria parcelado. E muitas pessoas reclamaram que fizeram o cadastro, mas não receberam o cartão.
Ângela Maria Vieira, 60 anos, liderança da comunidade de Vila Nova, em Itupanema, uma das atingidas pelo crime ambiental de fevereiro, também ficou de fora do primeiro lote dos cartões. “Não recebi o benefício, mas vou esperar mais um pouco para reclamar, porque eles falaram que vai ter um segundo lote. Eles sabem da contaminação na Vila Nova, mas lá não chegou a ter 100 pessoas contempladas. No Bom Futuro, só 40 pessoas receberam o cartão”, afirma.
A assessoria da Hydro afirma que o TAC não fez nenhuma previsão do número de famílias que deveriam ser atendidas. “O acordo determinou a realização de levantamento e cadastro para identificar as famílias situadas na área definida pelo Ministério Público, na bacia do Rio Murucupi, em Barcarena, que residiam nesses locais em fevereiro de 2018, quando ocorreram as chuvas extremas que provocaram inundações no município. Inicialmente, foram habilitadas 4.816 (quatro mil oitocentos e dezesseis) unidades familiares com base nos critérios definidos pelo Termo de Ajuste de Conduta”, diz a nota. Para fazer parte do cadastro, os moradores precisavam apresentar o comprovante de residência de fevereiro de 2018, CPF e data de nascimento do titular.
A Alunorte afirma que trabalha para ampliar a estação de tratamento de efluentes industriais, aumentar a capacidade de armazenamento e bombeamento de águas para absorver a intensidade de chuvas com tempo de recorrência de até 10 mil anos. Segundo eles, os depósitos já apresentam capacidade suficiente para garantir a segurança operacional, apesar de também estarem recebendo incrementos operacionais.
Ainda segundo a assessoria de imprensa, a Hydro Alunorte presta assistência a mais de 2 mil famílias das comunidades de Burajuba, Bom Futuro e Vila Nova, distribuindo água potável e fornecendo assistência médica. Até então foram entregues mais de 11 milhões de litros de água para uso doméstico e 146 mil galões (20 litros cada) de água potável e aproximadamente 700 reservatórios de água também foram doados. A empresa disse ainda que está alinhando os próximos passos da operação com o Ministério Público e a partir de janeiro vai informar à população.
Porém essa ajuda que chega para alguns, mas não para os quilombolas, é o que revolta a comunidade do Cupuaçu/Boa Vista. O quilombola Mário Assunção do Espírito Santos, 43 anos, vê um processo de exclusão social. “Não conseguimos emprego em lugar nenhum. Sou pedagogo, mas não tem vaga para a gente”, lamenta, dizendo que sofre perseguição por lutar pelos direitos de seu povo. Mário é uma liderança da comunidade quilombola Gibirié de São Lourenço, a mais distante da DRS1, mas nem por isso menos contaminada, já que também é banhada pelo rio Murucupi. Ela é considerada uma das mais resistentes de Barcarena.
“A verdade é que o progresso não veio para melhorar a vida dos filhos de Barcarena. Veio matar os filhos de Barcarena”, desabafa Mário, que já foi obrigado a comer restos de um lixão e precisou esperar as sobras da alimentação dos funcionários da Hydro Alunorte para garantir o almoço do dia. Ciente da relação desigual com o poder econômico, cujas corporações pagam caro para encomendar relatórios, ele desafia a empresa a conferir o problema de sua comunidade. “É fácil olhar o papel e dizer que não houve transbordo. Essa contaminação que a gente vê acontecer não é a quilômetros. É na minha cozinha. No meu quintal. Eu não sei o que se passa no meu quintal? A gente não sabe diferenciar o que é a lama que vem da rua da lama que vem da bacia?”, reforça.
Mário lembra que nos anos de 2004 e 2009 houve tragédias ambientais com o transbordo dos depósitos da Alunorte. Para o líder quilombola, a empresa cometeu o crime naquelas duas ocasiões, mas houve agentes que permitiram que ela cometesse o dano, entre eles, o governo do Estado do Pará. “Nenhum agente do governo foi responsabilizado. 2004; 2009; e agora 2018. Os agentes públicos precisam pagar pela sua irresponsabilidade. O IEC grita e o governo se faz de surdo?”, questiona.
Em 2009, segundo o site G1, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) multou a mineradora Hydro Alunorte pelo vazamento de rejeitos. As multas somaram R$ 17,1 milhões. A mineradora recorreu.
Pelo crime ambiental em fevereiro de 2018, a Hydro Alunorte foi multada pelo Ibama em R$ 20 milhões, sendo: R$ 10 milhões por realizar atividade potencialmente poluidora sem licença válida da autoridade ambiental competente e R$ 10 milhões por operar tubulação de drenagem também sem licença.
A exclusão dos filhos de Barcarena
De acordo com as lideranças quilombolas, os funcionários da Hydro Alunorte foram à comunidade do Cupuaçu/Boa Vista uma única vez no ano passado. Mas, no discurso, a empresa ameaça ir embora de Barcarena, o que é visto pelos quilombolas como uma forma de acirrar a revolta dos funcionários e da população contra os quilombolas e indígenas. “A Hydro não vai embora enquanto houver esse minério todo para ela explorar. Ela falou que ia embora só para jogar os funcionários contra a gente. Muitas lideranças quando passavam pelos funcionários eram xingadas. Na internet, então, fomos chicoteados”, lembra a agricultora Odilene Raiol, mãe de duas meninas, uma de 9 e outra de 10 anos.
O quilombola José Augusto do Santos Freitas, 44 anos, membro da diretoria da associação de remanescentes de quilombolas Gibirié de São Lourenço, afirma que a comunidade sempre foi aberta ao diálogo com a Hydro, mas que para fazer o cadastro funcionários foram ao local, somente, duas vezes. E lembra que a empresa tem um histórico de não cumprir promessas. No crime ambiental de 2009, a multinacional prometeu instalar um minissistema de tratamento de água na comunidade de Gibirié. Nunca mais se falou dessa obra.
O leito do rio Murucupi fica a 100 metros da comunidade e no local, os poços são do tipo amazonas, um tipo de poço raso, perfurado manualmente para captar água do lençol freático. As análises do IEC confirmaram a contaminação dos poços da comunidade. Nos postos de saúde, os médicos costumam dizer que vários problemas, como dores de barriga, coceira no corpo e problemas respiratórios, são decorrentes da má qualidade da água consumida.
“O nosso lema aqui sempre vai ser de resistência. Resistência não pela força, mas pela certeza de que essa terra é nossa e não deles. Não somos a primeira geração a brigar e lutaremos até o fim para não sermos a última”, afirma Armando Santos Freitas, quilombola com 60 anos e pai de José Augusto Freitas. Mesmo com todas as dificuldades, o homem se esforça bastante para mostrar sua alegria. Fez questão de oferecer o pouco almoço que tinha para a reportagem da Amazônia Real e lembrou da época em que podia viver da pesca, da plantação e até cantou sambas-enredo que compôs.