Por Redação UNC
“Guerreiro vem ver, guerreiro vem cá… Guerreiro vem ver a sua aldeia como está…”
Foi com essas palavras sendo entoadas em coro que o Encontro de Pajés da Aldeia Baixo Alegre na Bahia foi iniciado. O som calmo das vozes em uníssono arrepiava, era possível sentir no ar que algo grandioso aconteceria nos próximos dias.
A cerimônia estava marcada entre os dias 25 e 27 de maio, mas desde o dia anterior a aldeia já estava cheia; dezenas de barracas montadas e indígenas de diversos cantos do Brasil conversavam e riam, trocando causos e conhecimentos. Pataxós Hã-Hã-Hãe, Pataxós, Pankararus, Xakriabás, Guaranis M’bya, Guaranis Ñandeva, Kuikuros do Xingu, Bakairis, Bororos, Carajás e Kariris-Sapuyás, todos se reconheciam na troca de olhares como um só povo.
Esse momento entre os parentes é o desfecho de uma história de mais de 25 anos. Durante décadas Dona Lucília foi a líder espiritual, benzedeira e orientadora da aldeia Baixo Alegre. Sábia, rígida, carinhosa e mãe de muitos, incluindo Nailton, o Cacique da aldeia. Dona Lucília recebia os Encantados, conduzia os rituais da tribo e aconselhava os guerreiros durante ações e retomadas.
Por ser uma pessoa tão incrível, o Pai Tupã a chamou para ficar ao seu lado muito antes do previsto. Em 1993, aos 58 anos de idade, Dona Lucília deixa nosso plano astral, passando para seus filhos o legado de conduzir os rituais e preservar a espiritualidade do seu povo.
Muitos anos depois, ela aparece em sonho para Cacique Nailton e diz que eles precisariam de alguém para se dedicar ao trabalho de cuidar da saúde espiritual da aldeia, assim como ela tinha feito. Mas para que isso acontecesse ele deveria reunir pajés, xamões e líderes espirituais de diferentes tribos e lugares do país e seria através deles que os Encantados apontariam o escolhido.
Seguindo a orientação de sua mãe, o Cacique realiza o Encontro de Pajés, que durante três noites e três dias une energias e rituais de diversos lugares em um único grande ritual. Na Cabana de Cerimônias o Toré raramente parou. Do nascer do sol ao início da madrugada, o som dos maracás e dos cantos ecoava junto com o tremor dos pés pisando o chão simultaneamente. Cada música era acompanhada de diversos significados e de uma energia transcendente.
“Na minha aldeia tem… Belezas sem plantar… Eu tenho arco, eu tenho a flecha, tenho a raiz para curar…”
O ritual circular canalizava a energia para o altar no centro e aos Encantados que dançavam ao seu redor.
Através dessa grande expressão cultural, ancestral e religiosa que as nações presentes, mesmo com suas subjetividades, se comportavam como um grande e único ser, um único povo cantando em uma única voz, agradecendo e celebrando os Encantados, que realizavam curas, davam conselhos, preparavam medicinas e elevavam as energias do lugar e das pessoas.
Além das diversas comunidades indígenas, a cerimônia também foi acompanhada pelos povos de terreiro. Cinco mestres do Candomblé e seus Abiãs foram convidados a vivenciar os três dias de ritual, seguindo o ritmo dos maracás em seus tambores. A partir dessa troca, foi possível perceber muitas semelhanças entre as religiões de matriz africana e os rituais indígenas. Decorrência do período escravagista pós-descobrimento, onde índios e negros trabalhavam e conviviam juntos, e assim muitos dos conhecimentos originários brasileiros e africanos se mesclaram em um sincretismo histórico. Foi a união perfeita em um ato de resistência contra o homem branco opressor. Era fácil sentir a força ancestral presente no ambiente, como se estivéssemos diante de algo maior do que a própria existência humana.
Alguns dias antes do encontro começar o pessoal de Baixo Alegre terminou o mutirão de construção da Cabana do Pajé, um espaço destinado às práticas de cura da aldeia. Foi ali que no último dia de evento, pajés, xamões e líderes espirituais se reuniram para receber os Guias. Durante uma hora o Toré seguiu sem cessar na cabana principal, canalizando o fluxo das energias, enquanto na pequena cabana ao lado, os Encantados passavam suas mensagens e indicavam o novo pajé para aqueles com o privilégio de estar ali.
Aguardávamos na cabana maior, dançando junto ao incansável Toré, quando algumas pessoas foram chamadas a se juntar aos líderes espirituais na Cabana do Pajé. Entre essas pessoas estava Maria Rita Muniz, filha de Dona Lucília, irmã de Nailton, que descobriria mais tarde ser a escolhida como pajé de sua aldeia.
Quando todos retornam à Cabana de Cerimônias, o Cacique relata o que havia acontecido. Os Encantados apontaram quatro nomes de pessoas capazes de seguir esse caminho. Maria Rita Muniz deveria ser preparada, mas havia sido a escolha principal dos seres de luz. Logo depois D’Ajuda, mulher de presença forte que recebe os Encantados, como representante espiritual dos Kariri-Sapuyá que vivem na região. Por fim, Bida e Willians, ambos mais jovens, apontados para serem preparados durante os próximos anos e terão que dedicar suas vidas ao aprendizado necessário para um dia assumir o posto de Pajé dos Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Finalizado o ritual, todos deixavam a Cabana com corpos suados e cansados, mas com o semblante de felicidade ao cumprir mais uma missão. O ritual terminava ali com o objetivo atingido e a tarefa, dada pelos Encantados, de fortalecer a luta de outros parentes do Brasil.
“Eu tava lá na mata fraquejando… Índio guerreiro passou me chamando…”
Confira mais fotos do Encontro de Pajés nas galerias abaixo: