FONTE: O Globo
Ao contrário do que diz o órgão, pastor seguiu nos bastidores depois de sair da Amazônia com cursos, palestras e participação em congresso que discutem como alcançar povos isolados em regiões sem a presença missionária
Nomeado em fevereiro após uma manobra no regimento interno da Fundação Nacional do Índio ( Funai ) para ser o responsável pela proteção de povos isolados , o antropólogo Ricardo Lopes Dias, ao contrário de suas afirmações, continuou ligado a missões evangelizadoras de indígenas até o início deste ano. A Funai sempre afirmou que seu coordenador havia se desvinculado de projetos missionários há mais de 10 anos, mas registros levantados pelo GLOBO e depoimentos de índios que trabalharam com o pastor apontam para uma atuação de bastidores do religioso, não só pela Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), mas também na Primeira Igreja Batista de Guaianases (SP), com foco na formação de futuros ministros que dariam a continuidade ao trabalho por ele iniciado.
Lopes Dias é acusado por esses nativos de omissão diante da crise sanitária que ameaça os povos das aldeias, de não ter tomado nenhuma decisão a respeito das denúncias de invasões de missonários no Vale do Javari e tampouco colocado em prática um plano de contingência ao novo coronavírus nos 80 dias em que está à frente da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (Cgiirc), um dos motivos pelo qual o Ministério Público Federal (MPF) pede, mais uma vez, a suspensão de sua nomeação, que está nas mãos da juíza titular Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília.
Embora tenha dito quando assumiu o cargo estar desvinculado desde de 2010 de qualquer envolvimento com a prática missionária e que sua atuação seria apenas “técnica”, registros levantados pelo GLOBO comprovam que o religioso continuou a ministrar palestras, cultos e congresso voltados ao treinamento de jovens sempre com o objetivo de levar a palavra aos “confins da terra” e “alcançar os não alcançados”, prática condenada por antropólogos e indigenistas, porém, considerada a mais nobre missão entre esses evangélicos.
A atuação de Dias Lopes nos bastidores da evangelização demonstra flagrante conflito de interesses pelo cargo que ocupa, além de ferir a política de não contato sustentada pela Constituição de 1988.
Isso porque uma das funções do cargo de coordenador é trabalhar com informações sigilosas como a localização exata de povos isolados e de recente contato e a permissão para ingresso nessas terras indígenas. O setor que agora está sob a chefia de Dias Lopes foi até hoje o responsável pela fundamentação técnica que impediu a invasão de missionários nesses territórios afim de não permitir qualquer atividade de proselitismo religioso.
Além disso, o coordenador da Cgiirc tem o poder de aprovar estrategicamente as expedições para localização de índios isolados na Amazônia.
A ‘onda indígena’
Depois de trabalhar na evangelização de índios matsés no Vale do Javari, Ricardo e sua mulher, Arlete Dias, decidiram voltar para São Paulo em 2013 onde implantaram na Primeira Igreja Batista de Guaianases (PIBG) uma saga missionária voltada para evangelização indígena.
O movimento missionário afirma viver neste momento a chamada “terceira onda de missões”. A primeira, liderada pelo britânico William Carey, no fim do século XVIII, teve como objetivo alcanças as regiões costeiras do mundo; a segunda, capitaneada no século seguinte pelos também ingleses Hudson Taylor e Charles Thomas Studd, buscou as terras desconhecidas no interior dos continentes; e agora, inspirada no americano Ralph Winter, a que mira os “povos não alcançados”.
O objetivo dos missionários é treinar o indígena já convertido e capacitá-lo com aulas de teologia e história da Bíblia para que ele se torne um “multiplicador” dentro de sua etnia e também na busca por outras.
Embuídos da “terceira onda missionária”, o casal Dias trouxe a tiracolo a jovem Marina, uma representante do povo mayoruna, exibida na igreja como uma grande conquista do projeto.
Moradora de Atalaia do Norte, Marina contou ao GLOBO que Ricardo pediu permissão ao seu pai para levá-la e propôs financiar seus estudos missionários. O pai concordou desde que ela fizesse outro curso também, o de pedagogia. Marina, muita amiga da filha do casal, morou por um tempo com Ricardo e Arlete e recebeu formação religiosa no Seminário Batista de Teologia, entre Itaquera e Itaim Paulista, na zona leste da capital.
Durante os quatro anos em que morou em São Paulo, Marina passou a frequentar a igreja em Guaianases e se tornou um “caso de sucesso” entre os fiéis, o que deu certo status ao casal Dias.
– Fiz muitos amigos lá e acho que me preparei bem para voltar e trabalhar com meu povo – afirma Marina, que recebe ajuda de custo por ser missionária Batista de R$ 300.
O trabalho missionário de Ricardo e Arlete foi reconhecido publicamente pelo ex-presidente da Missão Novas Tribos Rinaldo de Mattos, no VI Congresso Indígena da Junta de Missões Nacionais em 2015. “A Missão Novas Tribos do Brasil parece ter muito a ver com a visão missionária da PIB de Guaianases. Há um casal na igreja, Ricardo Lopes Dias & Maria Arlete Dias Rego que trouxeram, da aldeia, uma moça Mayoruna para fazer Pedagogia em São Paulo, por conta da igreja, e voltar como professora para o seu próprio povo. Este fato tem trazido a igreja para bem perto do trabalho indígena”, disse em um artigo nas redes sociais.
Desde então foram diversas palestras, cultos e congresso liderados por Ricardo e Arlete com o objetivo de formar novos missionários em busca de levar o Evangelho aos “povos não alcançados”. A ligação entre a PIBG e a Missão Novas Tribos (MNTB) só aumentou com a chegada de Ricardo e Arlete. Ela e o próprio pastor da igreja de Guaianases, Atílio Cruz Neto, estudaram no Instituto Bíblico Peniel, entidade que pertence à MNTB e tem como finalidade formar missionários especificamente para evangelizar povos transculturais não alcançados.
Uma das pessoas mais próximas de Ricardo na igreja de Guaianases é o coordenador do grupo e do setor de Missões, Glaziano Lima. Em suas postagens nas redes sociais é possível comprovar que se trata de um grande entusiasta do trabalho dos missionários Ricardo e Arlete Dias. “O Conselho Missionário da Primeira Igreja Batista em Guaianases agradece e parabeniza os nossos missionários pelo trabalho com os índios, convido você a parabenizá-los: Pastor Ricardo Lopes Dias, Alerte Dias, Pastor Alberto França e Missionária Rita Mateus “, escreveu no Dia do Índio em 2018.
Glaziano tem verdadeira fascinação pela ideia de evangelizar os korubo, etnia dividida entre recém contatados e isolados, no Vale do Javari, onde Ricardo atuou. Na linha do tempo de seu perfil tem um mapa do Brasil, em inglês, que marca os lugares onde ainda não há presença missionária. A fonte do mapa é da associação que congrega as igrejas missionárias transculturais do Brasil (AMNTB) e que tem Edward Luz, presidente da Missão Novas Tribos, como vice-presidente do Departamento de Assuntos Indígenas (DAI).
De acordo com levantamento feito pelo DAI em 2017 , cerca de 150 etnias ainda estão “por serem alcançadas com o Evangelho dentro do Brasil”.
Localizada no oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru, a Terra Indígena Vale do Javari teve seu processo de demarcação finalizado no governo Fernando Henrique Cardoso, em 2001, e possui uma extensão territorial equivalente a quase dois estados do Rio de Janeiro (85,4 mil km²). É considerada a segunda maior demarcação depois da Terra Yanomami (96, 6 mil km²), homologada em 1992, pelo ex-presidente Fernando Collor.
Procurado pelo GLOBO, Glaziano Lima disse que foi proibido por seu pastor de falar sobre as missões.
‘Ricardo me enganou’
O jovem matsés Aldemar Decha Mayoruna não teve a mesma sorte de Marina. Ele acusa Lopes Dias de ter mentido para ele sobre ajuda de custos que lhe daria para vir estudar na Unievangélica, universidade de Anápolis, no interior de Goiás, ligada à MNTB. No final de 2019, Ricardo participou da negociação com seu tio Marcos Mayoruna para que Aldemar fosse morar na Missão Novas Tribos.
– Ricardo mentiu para mim. Ele me enganou. Depositou R$ 900 somente em janeiro em minha conta do banco e desapareceu. Eu não quero falar mais com ele – contou ao GLOBO por telefone.
– O Ricardo me falou: vou mandar dinheiro para você agorinha. Ele mentiu para mim. Dois meses eu não estou recebendo mais o dinheiro.
Aldemar contou que mora em uma das casas da Missão Novas Tribos e faz curso de Enfermagem. Com a supensão das aulas por conta da crise de coronavírus, seu pai, que mora na aldeia distante cinco dias de barco de Atalaia do Norte, não pode sair de casa para lhe ajudar.
– Estou passando necessidade, o dinheiro que o meu pai tinha me enviado está no fim e a Missão Novas Tribos já me disse que eles só vão dar casa. Eles disseram que com a alimentação eu tenho que me virar.
Após ser questionado pelo GLOBO, Lopes Dias fez contato com Aldemar nas redes sociais. Procurado , Aldemar afirmou que foi proibido de falar sobre o coordenador da Funai.
Indicação da Missão Novas Tribos
Jaime Mayoruna ainda mal falava português quando teve seu primeiro contato com Lopes Dias, em Palmeira do Javari, no Amazonas, com quem aos poucos aprendeu a língua portuguesa e anos depois se tornou tradutor de trechos bíblicos a pedido do pastor, muitas vezes em aldeias peruanas. Jaime contou ao GLOBO que recebia uma ajuda de custo do missionário, via Missão Novas Tribos.
– Recebia por tradução, às vezes ganhava R$ 100, outras R$ 150, mais para ajudar nos gastos pessoais – afirma ao lembrar que fez por volta de 30 traduções no total.
Hoje no último semestre do curso de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), Jaime sonha em ser chamado para trabalhar na Funai pelo amigo, uma promessa de Lopes Dias quando ele revelou ter sido indicado para o cargo de coordenador de índios isolados.
– Ele estava sendo procurado no final de 2019 para assumir o cargo, em novembro, dezembro. Até então que eu saiba, ele estava trabalhando com as missões na igreja para poder sobreviver, pois estava sem emprego. Eu não perguntei quem indicou ele, mas com certeza deve ter sido a Missão Novas Tribos que indicou ele, eu não posso afirmar porque ele não me contou, mas não tenho a menor dúvida de que tenha sido assim. Ele me disse que assim que desse ia me chamar para trabalhar com ele, sou da confiança dele – afirmou.
Jaime não seguiu a trajetória missionária de muitos amigos. Ele diz ter frequentando apenas umas duas vezes a igreja de Dias Lopes em Guaianases, logo quando chegou a São Paulo. No entanto, ele afirma ser contra o assédio dos missionários aos povos isolados.
– Eu conheço há muito tempo o Ricardo. Acho difícil ele segurar a pressão dentro desse governo. Sou totalmente contra o assédio de missionários aos povos isolados dentro do Vale do Javari. Ali não tem controle nenhum, entra quem quer. E ainda mais agora com essa pandemia, isso me preocupa muito.
A indicação de Dias Lopes para o cargo é confirmada pelo fillho do presidente da MNTB, Edward Luz Filho. Um áudio captado em uma de suas conversas, revelado pelo The Intercept, mostra Filho comemorando a escolha do missionário. “Vamos colocar um nome nosso lá na coordenação de isolados da Funai. Vocês vão ouvir falar”. Ao GLOBO, ele negou a comemoração.
A Missão Novas Tribos do Brasil nega a indicação e diz que não “trabalha com povos isolados”. A organização afirma ainda que o missionário não trabalha mais para a MNTB.
Jaime confirma que Lopes Dias deixou a região do Vale do Javari bastante criticado por lideranças indígenas, versão sustentada pelo missionário Marcos Dunu Mayoruna, o Pepe, ums dos indígenas evangelizados do Vale do Javari. Ele é um dos que, ao lado de Jaime, é citado no site da Funai como dando apoio à escolha de Dias Lopes para o cargo.
– Ricardo trabalhou muito tempo aqui com os americanos. Eles ficaram muito tempo aqui e não fizeram nada de bom para os indígenas. Tudo de bom ficou com eles, com os missionários não indígenas. As melhores oportunidades de melhora de vida e de estudos ficaram com eles – reclama.
Indígenas pedem saída de coordenador
Na semana passada, a Justiça do Amazonas determinou a retirada de missionários americanos e da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) na Terra Indígena Vale do Javari. A decisão assinada pelo juiz Fabiano Verli, da Vara Federal de Tabatinga (AM), pede que a Fundação Nacional do Índio (Funai) cumpra as ordens e proíba a entrada dos religiosos Andrew Tonkin, Josiah Mcintyre, Wilson Kannenberg.(Asas do Socorro) e de qualquer representante da MNTB ou de outra organização ligada a igrejas em meio à ameaça de coronavírus.
O americano Andrew Tonkin deixou o país depois de se inteirar que a Justiça estava atrás dele para prestar depoimento. Ele é amigo de Ricardo nas redes sociais e diz ter apreço pelo novo coordenador da Funai.
A decisão da Justiça se deu após ação da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) , baseada em reportagem do GLOBO que revelou um plano de missionários americanos para contatar povos isolados na região. O Ministério Público Federal (MPF) foi a favor da medida. “Os territórios indígenas do Brasil não podem ser uma terra em que qualquer um chega, brasileiros ou não, fazendo o que quer sem monitoramento”, afrma o juiz.
Um dos pontos citados na ação é a relação de proximidade deLopes Dias com os alvos do pedido de liminar, além de sua omissão diante das denúncias.
A Univaja afirma que no cargo responsável pelo cuidado com as populações isoladas “está um outro pastor que outrora ombreava os denunciados e fazia parte da mesma agência missionária com os mesmos propósitos”.
“Mesmo sendo um dos coordenadores na FUNAI responsável pela proteção de índios isolados, e mesmo tendo conhecimento dos intentos de seus ex-aliados na região, na condição de agente público e pessoa diretamente interessada na resolução do conflito, se omitiu e nenhuma providência mais enérgica foi tomada com vistas a sanar a questão”, diz o documento.
MPF vê ‘condutas problemáticas’
O MPF aponta como um dos fatos novos para pedir a suspensão da nomeação de Dias Lopes a “omissão” do coordenador de índios isolados da Funai em meio à crise de coronavírus.
No pedido enviado à 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília, o MPF aponta “conduta omissiva” de Dias Lopes em relação à proteção desses povos em meio à pandemia e que isso os expõem “a um risco iminente de genocídio”, sobretudo, pela baixa resistência que eles têm a doenças respiratórias.
O MPF sustenta que a escolha de Dias Lopes pela Funai para o cargo acarretou em “condutas problemáticas” adotadas pelo coordenador da Cgiir e cita o recuo do órgão após a publicação da portaria que estabelecia medidas temporárias de combate ao novo coronavírus, no mês passado. O texto contrariava o próprio regimento da Funai ao tirar da Coordenação-Geral de Índios Isolados a atribuição de contatar esses povos transferindo a responsabilidade às coordenações regionais .
Em sua publicação das medidas temporárias de prevenção à infecção e propagação da Covid-19, o artigo 4º da portaria determinava a suspensão de todas as atividades que implicassem no contato com comunidades indígenas isoladas, porém, estabeleceu que essa suspensão seria revista se tivesse autorização das coordenações regionais “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”.
O MPGF já havia pedido a suspensão da nomeação de Dias Lopes uma semana após a Funai oficializar sua indicação. Uma liminar dada pela 6ª Vara Federal do DF, no entanto, decidiu mantê-lo no posto.
Os procuradores sustentam que Dias tem profundas ligações “com organização que tem por meta estreitar com os indígenas, preferencialmente os isolados e de recente contato, relações de dependência favoráveis à propagação da fé”. Na ação, o MPF vê ainda ameaça de “genocídio e etnocídio” contra povos indígenas isolados, conflito de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil desde a redemocratização em relação a esses povos.
A decisão liminar da Justiça, no entanto, não levou em consideração a manobra feita pelo presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, que alterou o regimento interno do órgão uma semana antes da nomeação de Dias Lopes. O fato dele não ser servidor concursado o impedia de assumir ao cargo.
Outra tradição para ser coordenador também foi ignorada pela Funai : a de ser aceito pelos 11 chefes das Frentes de Proteção Etnoambiental(FPEs), unidades descentralizadas do órgão especializadas no trabalho com povos isolados e de recente contato.
Atualmente, existem 86 registros da presença de índios isolados no Brasil que carecem de pesquisas para sua confirmação, alguns localizados em regiões com grandes fazendas de poderosos proprietários de terras. A letargia, a omissão ou a decisão errada podem provocar o desaparecimento de grupos de indígenas isolados existentes nessas regiões, como já ocorreu inúmeras vezes na história da Amazônia.
Outro lado
A Funai defende sua permanência e diz se tratar de “preconceito religioso” a tentativa de suspender o nome de Lopes Dias por ele “professar a fé evangélica” e que isso “não significa que haja autorização do órgão para suposta atuação de missionários em áreas indígenas”.
O órgão não respondeu aos questionamentos do GLOBO sobre se existe a elaboração e execução dos Planos de Contingência para Situações de Contato dos 28 registros oficiais de índios isolados, além dos Planos de Contingências para Surto e Epidemias para os quase 20 povos de recente contato reconhecidos pela Funai.
A Funai também não respondeu se foi criada, assim como determina a Portaria Conjunta 4.094/2018, a chamada Sala de Situação em conjunto com a Sesai para coordenar os Planos de Contingência em todas suas unidades descentralizadas na Amazônia, após quase 60 dias do início da pandemia no país.
Procurado, Ricardo Dias Lopes não retornou aos contatos feitos por telefone e aplicativo de mensagens.