Neri Guarani Kaiowá é mais um indígena assassinado por quem deveria zelar pela sua segurança. A Polícia Federal instaurou inquérito policial no dia de ontem, quinta-feira (19), para investigar a morte do jovem de 23 anos no Território Nhanderu Marangatu, em Antônio João, no Mato Grosso do Sul, assassinado com um tiro na cabeça. Legistas de Brasília chegaram ao MS para realizarem a necrópsia. A perícia é feita no Instituto Médico Legal (IML) de Ponta Porã (MS). Segundo o superintendente da PF em MS, Carlos Henrique Dotta D’Ângelo, “Neri foi morto na condição de ser indígena. Assim que soubemos da situação em Antônio João, nos desdobramos para atuar na investigação. Agora, vamos levantar mais elementos do caso”. O corpo foi retirado do local da morte apenas após a chegada da equipe da PF. Neri Ramos da Silva foi morto na quarta-feira (18) no segundo confronto com a Polícia Militar do MS em menos de uma semana. A Grande Assembleia Guarani-Kaiowá (Aty Guasu), organização sem fins lucrativos liderada por indígenas da etnia Kaiowá e Guarani, disse em publicação nas redes sociais que equipes da tropa de choque “atacaram” uma “área de retomada” – local de disputa entre fazendeiros e indígenas – na fazenda Barra. O secretário estadual de Segurança Pública do MS, Antônio Carlos Videira, informou que 100 policiais militares estão no local cumprindo uma decisão judicial para manter a ordem e segurança na propriedade rural. Detalhe: a fazenda Barra está sobreposta a área ancestral dos Guarani Kaiowá. Sem o menor respeito à memória de Neri, o secretário afirmou que os conflitos foram acirrados “com a presença de índios paraguaios”. A verdade é que os povos indígenas seguem sem a proteção do Estado. Não existe conflito quando um lado é fortemente armado e o outro está totalmente desprotegido. O nome disso é genocídio

A morte de Neri foi crime anunciado. Na semana passada, pelo menos dois indígenas da comunidade Nhanderu Marangatu foram feridos durante um confronto com policiais militares de Mato Grosso do Sul. Em nota, a Funai relatou que acompanha o caso e que solicitou providências urgentes sobre a atuação da polícia na área. A Força Nacional não estava presente na área no momento das ações da PM do MS. De acordo com lideranças locais, em um dos momentos da operação policial desta quarta-feira, o corpo de Neri foi arrastado para dentro da mata por policiais militares, o que gerou revolta entre os Guarani e Kaiowá. Os indígenas avançaram em direção ao local para onde o corpo foi levado, resultando em novos confrontos. 

O Território Indígena Nhanderu Marangatu, invadido por posseiros da fazenda Barra, que contam com apoio armado da PM do Mato Grosso do Sul

Marco Ancestral x Marco Temporal

O procurador-geral da República, Paulo Gonet, enviou em abril deste ano, um parecer ao Supremo Tribunal Federal (STF) no qual defende a derrubada do marco temporal das terras indígenas, que foi recriado no ano passado pelo Congresso Nacional, após o próprio Supremo ter julgado a tese inconstitucional. Pela tese do marco temporal, os povos indígenas somente teriam direito à demarcação de terras que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Esse entendimento foi considerado inconstitucional pelo Supremo em setembro de 2023. Entretanto, em resposta, o Congresso aprovou a lei 14.701/2013, restabelecendo o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Esta posição do Congresso fere a Constituição, tornando-se munição para novos assassinatos de indígenas no país. O genocídio continua.

Na noite de uma quinta-feira, em 21 de setembro de 2023, foi sacramentada no STF a vitória por 9 x 2 dos povos originários sobre a tese inconstitucional do marco temporal

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) emitiu uma nota a respeito da violência contra os indígenas no Mato Grosso do Sul: 

“manifestamos profundo pesar e indignação diante dos violentos ataques sofridos pela comunidade Guarani na Terra Indígena Nhanderu Marangatu, no município de Antônio João (MS), quando um indígena foi brutalmente assassinado com um tiro na cabeça, conforme informações confirmadas pela unidade da Funai em Ponta Porã. A Funai informa que já acionou a Procuradoria Federal Especializada (PFE) para adotar todas as medidas legais cabíveis e está comprometida em garantir que essa violência cesse imediatamente e que os responsáveis por esses crimes sejam rigorosamente punidos. O conflito também tem sido monitorado por meio da Coordenação Regional em Ponta Porã (CR-PP). O órgão indigenista já se reuniu com o juiz responsável pelo caso, solicitando providências urgentes sobre a atuação da polícia na área. Em diálogo com a Secretária de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, a instituição reafirmou a orientação de que não deve haver qualquer medida possessória contra os indígenas da Terra Indígena Nhanderu Marangatu.

Na última terça-feira (17), a Funai realizou uma reunião com diversas instâncias, incluindo a CR-PP, a Diretoria de Proteção Territorial (DPT), a Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação (CGID), a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai, a Consultoria Jurídica do Ministério dos Povos Indígenas (Conjur MPI) e a Procuradoria-Geral Federal (PGF). Na oportunidade, foram definidos encaminhamentos urgentes, como a solicitação da presença constante da Força Nacional na área. Diante da gravidade dos fatos, a Fundação está preparando nova atuação perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a fim de garantir a proteção da comunidade indígena.

A Fundação reitera que tais atos são inaceitáveis e que está mobilizando todos os esforços para salvaguardar os direitos e a segurança dos povos indígenas da região. A Funai segue firme no compromisso de garantir os direitos e a segurança dos povos indígenas, reafirmando a urgência de medidas para interromper a violência e proteger a Terra Indígena Nhanderu Marangatu.”

Uma segunda nota da Funai foi publicada ainda sobre o assassinato de Neri e as declarações caluniosas do secretário de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, Antonio Carlos Videira: 

“a Fundação recebe com preocupação a declaração noticiada na imprensa, que teria sido feita pelo atual secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, Antonio Carlos Videira, em relação aos indígenas envolvidos no trágico episódio ocorrido na Terra Indígena Nhanderu Marangatu, na última quarta-feira (18). 

De acordo com o jornal “Correio do Estado”, o secretário afirmou que os conflitos foram acirrados “com a presença de índios paraguaios” que teriam relação com “interesses de facções criminosas que exploram o tráfico de drogas”. O secretário também teria afirmado que “a grande produção [de drogas] de toda essa região tem como destino grandes centros, por meio de aldeias. De aldeia em aldeia até chegar próximo de Campo Grande; Dourados; e aí ter acesso aos maiores centros consumidores”. As informações foram publicadas na edição eletrônica do jornal na quarta-feira (18). 

Tal afirmação não apenas reforça estereótipos preconceituosos, como também desconsidera a complexidade e a gravidade da situação vivida pelos povos indígenas na região. A declaração desrespeita a memória do indígena Neri Guarani Kaiowá, assassinado com um tiro na cabeça, e, por conseguinte, os direitos fundamentais das comunidades indígenas ao tratá-las como meros pontos logísticos para o tráfico de drogas. 

No atual contexto em que os povos originários enfrentam uma longa e dolorosa história de violações, a acusação generalizada de associação de indígenas ao tráfico de drogas desvia o foco dos verdadeiros problemas: a violência sistemática, as dificuldades para avançar nos processos de demarcação de terras indígenas e a obtenção de proteção efetiva de seus territórios, bem como a carência de políticas públicas que respeitem a cultura e o modo de vida dos povos originários.

É fundamental que as autoridades instituídas conduzam uma investigação séria, imparcial e transparente sobre o ocorrido, sem pré-julgamentos e sem criminalizar injustamente aqueles que, historicamente, têm lutado por seus direitos e por sua sobrevivência. Ao proferir tais acusações, o secretário não apenas ofende a comunidade indígena do território Nhanderu Marangatu, mas também todos os povos indígenas e suas lutas legítimas por respeito, reconhecimento e justiça.

A Funai reitera sua solidariedade à comunidade Nhanderu Marangatu, a todas as comunidades indígenas e à família de Neri Guarani Kaiowá. A autarquia indigenista pede que as autoridades tratem este caso com a seriedade e o respeito que ele merece, garantindo o direito à verdade e à justiça.”

Com informações do blog Veja Aqui Mato Grosso do Sul e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Compartilhe via: