FONTE: Intercept

UMA CONVERSA GRAVADA entregue ao Intercept por uma fonte que pediu para não ser identificada revela que missionários evangélicos trabalharam pela nomeação de alguém com o perfil do pastor Ricardo Lopes Dias para a área que cuida de índios isolados da Funai. O áudio mostra também que o objetivo do grupo é converter os indígenas ao cristianismo.
No áudio, o antropólogo e evangélico Edward Mantoanelli Luz diz o seguinte:

“Nós vamos colocar um novo presidente na CGIIRC, nós acabamos de indicar uma nova pessoa para a CGIIRC, acho que você já deve ter lido e nós vamos formalmente mudar essa política porque nós acreditamos que, por mais inteligente que ela tenha sido até agora, ela permite manipulações, nós desconfiamos de manipulações”.

Mantoanelli Luz assume na conversa que fez lobby para que alguém alinhado com sua religião assumisse a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. A política que ele diz que irá “formalmente mudar” é a que impede a ação de missionários em terras de indígenas isolados, em respeito ao princípio de autodeterminação dos povos – previsto na Constituição.
Na prática, a política vigente nas últimas décadas impedia que padres, pastores e outros religiosos entrassem em contato com os indígenas na tentativa de convertê-los a suas fés.
O antropólogo é filho do presidente da Missão Novas Tribos do Brasil, a MNTB, o pastor Edward Gomes da Luz. A MNTB é uma corrente evangélica norte-americana que agencia missionários para pregar, construir igrejas e converter povos indígenas de recente contato, falantes de línguas nativas.
A Novas Tribos já foi expulsa pela Funai das terras do povo Zo’é em 1991, acusada de impor a doutrina cristã e espalhar doenças. Em 2015, a corrente foi denunciada pelo Ministério Público Federal de se aliar com exploradores de castanha-do-pará que escravizavam indígenas.
Ministério Público diz desrespeito à autodeterminação de índios isolados produz ‘risco de etnocídio e genocídio dos povos indígenas’.
Nomeado em 5 de fevereiro, Lopes Dias é antropólogo e trabalhou formalmente de 1997 a 2007 na Novas Tribos, atuando na evangelização do povo indígena Matsés, no Vale do Javari, Amazonas. À BBC, ele disse não ter mais vínculos com a Novas Tribos.
A conversa em que Mantoanelli Luz se congratula pela nomeação de Lopes Dias consta na ação civil pública que o Ministério Público Federal apresentou à justiça na terça, 11 de fevereiro, pedindo que a nomeação seja suspensa, e a portaria que permitiu sua indicação, revogada. Até a edição da portaria, cargos como o dele só poderiam ser ocupados por servidores de carreira da Funai.
Segundo o MPF, há “nítido conflito de interesses e desvio de finalidade, com riscos à política de não contato e de respeito à autodeterminação dos povos indígenas isolados ou de recente contato”. Com grifos, o MPF aponta “risco de etnocídio e genocídio dos povos indígenas” com a nomeação. Procurada pelo Intercept, a Funai informou que a posse de Lopes Dias obedeceu as regras para cargos em comissão e que acionou a Advocacia-Geral da União para defender a nomeação dele.
artigo 231 da Constituição Federal proíbe a evangelização dos indígenas e diz que é dever da União demarcar as terras deles, além de “proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Mas, no áudio, Mantoanelli diz não entender o que chama de “resgate da tradição” indígena e, aparentemente, debocha do risco de morte que doenças simples podem trazer a povos isolados que entrem em contato com servidores ou missionários:
“Falam em respeitar as tradições deles. O Brasil tem uma tradição engraçada de expandir a sua área, a gente poderia resgatar essa tradição. Alguém avisou aos vírus e bactérias que eles são isolados? Por que o contato não pode ser mediado pelo governo?”
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Edward Mantoanelli Luz trabalhou para colocar gente alinhada para cuidar de índios isolados e “formalmente mudar essa política” que impede a conversão religiosa deles.

Procuramos Mantoanelli Luz, que confirmou ter trabalhado para nomear o coordenador de Índios Isolados e de Recente Contato, mas disse que preferia um militar. Ainda assim, fez elogios a Lopes Dias e disse que representa “setores da cristandade brasileira, católicos, evangélicos e protestantes” e que não concorda com a “política ultrapassada indigenista em voga hoje”.
Em seu currículo no sistema Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Mantoanelli Luz afirma ser sociólogo e mestre em antropologia. Em 2013, porém, a Associação Brasileira de Antropologia, a ABA, expulsou-o do quadro de associados, alegando não corroborar com suas afirmações “equivocadas e reducionistas, inteiramente desprovidas de rigor e embasamento científico”.
Hoje, além de professor da Unievangélica, um centro universitário privado localizado em Anápolis, Goiás, ele se intitula “antropólogo-consultor” para “atender as (sic) crescentes demandas de laudos e pareceres antropológicos isentos, profissionais e confiáveis”, conforme o Lattes.

Na plataforma Lattes, o antropólogo, expulso pelos pares da associação da categoria, anuncia que fornece “laudos e pareceres isentos”.

Em 2014, um laudo de Mantoanelli Luz foi usado como base de uma sentença que não reconheceu terras indígenas no baixo rio Tapajós, no Pará, e gerou protestos. Indígenas o chamaram de “falso antropólogo”, e a ABA se manifestou contra a decisão alertando que o antropólogo que a embasara não era reconhecido como tal por seus pares.
Segundo o parecer sobre a sentença feito por um dos mais renomados antropólogos brasileiros, Eduardo Viveiros de Castro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mantoanelli Luz elaborou seu contralaudo a pedido da Associação das Comunidades Unidas dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Mar, a Acutarm. É uma “entidade que funciona como testa-de-ferro dos grandes empresários madeireiros que atuam na região e que serviu de apoiadora das associações comunitárias que moveram ação contra os Borari-Arapium”, povos do baixo Rio Tapajós, esclareceu Viveiros de Castro. Mantoanelli Luz sustentou não haver índios na região, mas ribeirinhos.
Em sua defesa, Mantoanelli Luz afirmou no Twitter, à época: “todas, todas as teses q defendi foram sustentadas e defendidas pelo Juiz Portela!!” (sic) – como se a canetada de um juiz pudesse eximi-lo de erros científicos.
Nos últimos meses, Mantoanelli Luz tornou-se um crítico do atual presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier, nas redes sociais, junto de Ysani Kalapalo, a youtuber indígena de direita que Jair Bolsonaro levou à ONU. Em novembro, ele invadiu o encontro Amazônia Centro do Mundo, organizado em defesa dos povos da floresta, junto com fazendeiros, e declarou à Agência Pública ser consultor da Federação da Agricultura e Agropecuária do Pará, Faepa.

“Eu também fiquei muito feliz, mas me enganei assim como muitos aí”

Edward Luz. Antropólogo & Consultor Parlamentar.
Respondendo a @ysanikalapalo @PresidenteFunai

“Em Junho de 2019 eu fui o primeiro e um dos únicos analistas sociais a celebrar a indicação do do Dr. Marcelo Xavier para @PresidenteFunai. Aplaudi a iniciativa certo de que sua indicação seria um marco no combate à hegemonia ONGueira e esquerdista dentro do órgão indigenista.”

“O @PresidenteFunai até tem boa vontade e está tentando de forma desastrada assumir importantes decisões. Depois d 3 meses ficou claro q sua melhor habilidade, fruto d anos como Delegado da PF é mesmo perseguir pessoas, ainda que sejam importantes aliados do atual Governo. Triste!”

“ou ainda 2) Incapaz de sentar e estabelecer alianças com lideranças indígenas, o atual @PresidenteFUNAI inaugura nova linha de atuação política, prometendo “interpelar judicialmente” @ysanikalapalo para que a justiça converse. Não. Muito non sense e inacreditável né!?!”

Índio tutelado por presidentezeco de órgão indigenista, isso não mais!

Ver imagem no Twitter

‘Nós vamos voltar aos Zo’é’

Entrevistamos Edward Gomes da Luz, o pai de Mantoanelli, em 2011, durante o 11º Congresso Brasileiro de Missões, organizado pela Associação das Missões Transculturais do Brasil, a AMTB. À época, ele foi contundente sobre a intenção de retomar o trabalho de catequização dos Zo’é, dando de ombros ao impedimento legal e constitucional:

“Nós vamos voltar para os Zo’é. Não sei como, mas nós vamos voltar”.

Em seguida, reforçou:

“A pessoa ou vai ajoelhar voluntariamente, adorando [ao deus cristão] , ou vai ajoelhar obrigatoriamente, temendo [ao deus cristão]”.

Gomes da Luz também argumentou que a Novas Tribos têm “relação de vida” com os Zo’é e chamou a política de respeito à autodeterminação dos povos a uma obsessão da “antropologia de manter os índios numa bolha”.
Em 1991, a Novas Tribos foi expulsa das terras do povo Zo’é, que vive na calha norte do Pará (a região entre o rio Amazonas e a fronteira norte do país com Venezuela, Guianas e Suriname). Os missionários foram acusados pela Funai de organizar um contato forçado para evangelização que resultou em mortes de indígenas por gripe e malária.
Douglas Rodrigues, médico professor da Unifesp e coordenador do programa Xingu de Saúde Indígena, visitou a área na época junto com colegas da ONG Saúde e Alegria. Ao chegar ao local, encontrou indígenas doentes e uma missão, liderada pelo pastor Gomes da Luz, que pregava o cristianismo para a tribo. Os missionários sequer haviam vacinado os indígenas e não tinham qualquer experiência no contato com povos isolados nem tomavam os devidos cuidados sanitários.
A situação presenciada por Rodrigues foi corroborada por outros médicos, antropólogos e sertanistas, que recomendaram a expulsão dos missionários à Funai. O órgão retirou-os da área e colocou em prática um programa liderado pelo sertanista Sydney Possuelo para recuperar a cultura e a saúde do povo Zo’é.
O episódio também acarretou o cancelamento de todos os convênios da Funai com missões evangelizadoras, desde então proibidas de entrar em terras indígenas. Os Zo’é, hoje, são pouco mais de 300 pessoas. Ainda assim, estão entre os grupos mais visados pelos missionários.
Mesmo depois de serem retirados, missionários seguiram tentando invadir a área, chegando a ser expulsos e até presos em diversos episódios registrados ainda nos anos 1990 e nos últimos anos.
Em 2007, outra missão de origem norte-americana, a Jovens com uma Missão, também conhecida por Jocum, foi expulsa por ordem judicial das terras do povo Suruwahá, no Amazonas, acusada de praticar diversos crimes, como escravizar indígenas, contrabando de sementes e extração ilegal de sangue, entre outros. Mas, nesta semana, 13 anos depois de ser retirada à força da tribo, a Jocum foi anunciada pela ministra Damares Alves como integrante da comitiva que irá visitar os suruwahás para “sanar uma crise de saúde mental”.
A nomeação de um pastor missionário decorre do movimento de “tsunami evangélico” iniciado com posse de Damares Alves para o ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A ministra participou da fundação da organização evangélica Atini – Voz Pela Vida, que acusa indígenas de ser praticantes contumazes infanticídio. A Atini também foi denunciada pelo MPF de sequestrar e traficar crianças das aldeias, dizendo que iriam salvá-las, além de promover o ódio contra indígenas na sociedade.
Os missionários que agora comandam a coordenação mais delicada da Funai são tidos por indigenistas como mais fundamentalistas do que os evangélicos que recentemente ocuparam a presidência da entidade no governo Michel Temer, como o pastor Antônio Toninho Costa e o general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas, um dos líderes da bancada evangélica. Ambos tinham trânsito no Congresso e apoio do Partido Social Cristão, o PSC, legenda dominada por evangélicos.
Mas Costa e Freitas acabaram derrubados devido a conflitos com ruralistas. Em 2017, após quatro meses no cargo, Costa disparou que “ruralistas tomaram controle da Funai” e que mudanças na política para isolados e o enfraquecimento das frentes de proteção os colocariam em risco de “catástrofe internacional”.
Wallace Moreira Bastos, que presidiu a Funai entre maio de 2018 a janeiro de 2019, caiu após embate com o ministro Paulo Guedes para contratação de novos servidores – e também por sofrer oposição da ministra Damares Alves.

Ouça os aúdios na matéria do Intercept

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