FONTE: Nexo
Desde o final da década de 1990, política tem se caracterizado por assentamentos, sem que isso implique, no entanto, desapropriações de grandes áreas privadas
Em mais uma medida seguida por recuo, o governo Bolsonaro determinou a paralisação da reforma agrária no Brasil, mas a suspendeu um dia após a informação repercutir.
No dia 8 de janeiro de 2019, a ONG Repórter Brasil revelou o teor de três memorandos internos aos quais teve acesso. Eles haviam sido distribuídos no dia 3 de janeiro a servidores do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

  1. O primeiro deles determinava a paralisação, sem prazo, dos processos de aquisição, desapropriação e qualquer outra forma de obtenção de terras para a reforma agrária no Brasil. A mesma medida paralisava os 1.700 processos em curso para titulação de territórios quilombolas no Brasil. O documento foi assinado pelo ex-diretor do Incra, Clovis Figueiredo Cardoso, ligado ao MDB do Mato Grosso e indicado durante o governo Temer.
  2. Também assinado por Cardoso, outro documento determinava que as superintendências regionais do Incra disponibilizassem, até o dia 9, a relação de todos os imóveis que poderiam ser destinados à reforma agrária.
  3. E um terceiro reforçava a ordem de suspender os processos de compra e desapropriação em andamento, exceto nos casos daqueles que tramitavam na Justiça. Ele ressaltava que a determinação valia para áreas da Amazônia Legal, e fora assinado por Cletho Muniz de Brito, diretor de ordenamento da estrutura fundiária do Incra.

A informação foi repercutida por veículos de mídia. No dia seguinte à reportagem, o presidente substituto do órgão, Francisco José Nascimento, enviou um novo memorando às superintendências em que revoga os dois documentos que paralisavam a reforma agrária.
O contexto do vaivém
A justificativa presente no primeiro memorando que paralisava a reforma agrária era de que os processos seriam suspensos até que a nova estrutura do Incra fosse definida pelo governo.
Em nota à Repórter Brasil, o Incra reforçou a justificativa, afirmando: “conforme consta no corpo do próprio documento, os processos foram sobrestados enquanto não se define a nova estrutura do Incra”.
As instituições responsáveis pela política fundiária têm sido foco de uma série de alterações sob o governo Bolsonaro. Já no dia 1º de janeiro, o presidente publicou uma medida provisória que reorganiza a estrutura dos ministérios dos órgãos da Presidência da República.

  • Ligado desde 2016 à Casa Civil, o Incra foi transferido para o Ministério da Agricultura
  • A medida provisória explicita que a responsabilidade sobre concessão de títulos de terras quilombolas e a reforma agrária passa para o Ministério da Agricultura
  • Anteriormente sob a pasta da Justiça, a Funai (Fundação Nacional do Índio) passou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e perdeu o poder de demarcar terras indígenas. A prerrogativa também foi transferida para o Ministério da Agricultura

A pasta vem sendo comandada por Tereza Cristina, que é ex-presidente da bancada ruralista na Câmara dos Deputados.
O Ministério da Agricultura também ganhou uma nova Secretaria de Assuntos Fundiários, com a responsabilidade de lidar com políticas fundiárias, inclusive com a reforma agrária. Ela é comandada por Nabhan Garcia, amigo pessoal de Bolsonaro e membro da conservadora UDR (União Democrática Ruralista).
Reforma agrária não significa sempre desapropriação
Ao Nexo, a doutoranda em história econômica pela USP (Universidade de São Paulo), Joana Salém, que pesquisa reforma agrária, afirma que “o que nós chamamos de reforma agrária no Brasil hoje é diferente do que se chamou de reforma agrária em outros momentos da história”.
Ela afirma que, nos anos de 1950, 1960 e 1970, chamava-se de “reforma agrária” um processo, proposto por movimentos sociais, de mudança radical na estrutura de propriedades do campo, que coibisse a concentração de terras, historicamente alta no Brasil.
Ela cita como exemplo as “ligas camponesas” dos anos 1950, articuladas inicialmente com apoio do Partido Comunista Brasileiro. Esses grupos foram violentamente  perseguidos e desmantelados durante a ditadura militar, que se inicia em 1964.
Já naquele ano, o regime militar implementa o Estatuto da Terra, que vigora até hoje e disciplina a ocupação fundiária no Brasil.
Sem falar em “desconcentração de terras”, o documento define a reforma agrária como “o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”.
“Ao invés de combater a reforma agrária, a ditadura se apropria da expressão ao produzir o Estatuto da Terra”, afirma Salém. O documento define a promoção do acesso à terra como um dever do Estado nos seguintes termos:

“É dever do Poder Público: promover e criar as condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra economicamente útil, de preferência nas regiões onde habita”

Estatuto da Terra, implementado durante o regime militar

Dessa forma, o documento lança as bases para a revisão do conceito de reforma agrária como uma política de desconcentração de terras.
Um instrumento eficiente para levar à desconcentração é a chamada “desapropriação”, quando o poder Executivo determina que uma área é de utilidade pública e a adquire de um proprietário por determinado valor, em um processo que pode ser questionado judicialmente.
Na reforma agrária, essas terras tendem a ser retiradas de grandes proprietários -frequentemente daqueles endividados com o Estado- e transferidas a colonos.
Com o tempo, a reforma agrária passou a ser mais associada ao assentamento de colonos no Brasil, sem necessariamente passar pela desapropriação de grandes extensões de terra, e pela consequente mudança da estrutura fundiária.
Desapropriação foi mais forte até FHC
O processo de reforma agrária com contornos similares aos atuais se iniciou em 1985, sob o governo de José Sarney. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) disponibiliza dados sobre a forma como esse processo vem se dando no Brasil até 2018.
No que diz respeito a desapropriações, a reforma agrária se deu de forma mais acentuada até a virada do milênio, sob o governo FHC (1995-2003), mas perdeu fôlego já na metade de seu segundo mandato. O governo Lula (2004-2011) foi pródigo em assentamentos, sem retomar, no entanto, as desapropriações.
Sob ambos os pontos de vista, a reforma agrária continuou a perder tração sob Dilma Rousseff (2011-2016) e sob o governo Michel Temer (2016-2018).
Veja abaixo os resultados da Reforma Agrária no decorrer do tempo, em termos de área desapropriada, área incorporada à política e número de famílias assentadas.
Na série disponibilizada pelo Incra, as informações relativas ao primeiro ano, 1994, na verdade compilam o acúmulo de resultados até então. Nas tabelas, 1994 deve ser lido, portanto, como “até 1994”.
ÁREA DESAPROPRIADA E ÁREA INCORPORADA


BENEFICIÁRIOS DAS POLÍTICAS

Políticas de reforma agrária da democratização a Temer
No artigo “Reforma agrária e concentração fundiária: uma análise de 25 anos de reforma agrária no Brasil”, publicado em 2016 na Revista Econômica do Nordeste, os pesquisadores Sebastião Ribeiro e Renato Fleury, ligados à Unesp (Universidade do Estado de São Paulo), escrevem que a política implementada após o golpe militar foi marcada por: supressão das penalizações aplicadas sobre detentores de vastos imóveis rurais improdutivos e concessão de incentivos estatais para que se modernizassem.
Entre 1975 e 1985, durante os governos dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, o regime militar começa a implementar um processo de abertura e redemocratização. Em 1985, um colégio eleitoral realiza eleições indiretas e escolhe os primeiros presidente e vice-presidente civis, Tancredo Neves e José Sarney.
Após a morte de Neves por uma infecção generalizada, Sarney assume. Os pesquisadores Fleury e Ribeiro escrevem que, naquela época, a bandeira em defesa de uma ampla reforma agrária “mobilizou amplos segmentos da sociedade brasileira e a quase totalidade dos seus membros mais progressistas”.
Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária
“Foi a longa luta política pela democratização do acesso à terra feita pelos trabalhadores rurais com pouca ou nenhuma terra que teve o papel fundamental na incorporação pelos governos democráticos da Reforma Agrária como política de Estado”, escrevem os pesquisadores.
A política foi adotada pelo governo Sarney em 1985, quando o país implementa seu Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, com metas ambiciosas de assentar 7,1 milhões de trabalhadores rurais em 15 anos.
Já em 1985, grandes proprietários de terra criam como reação à política de Sarney a UDR, da qual o novo secretário de Assuntos Fundiários do governo Bolsonaro, Nabhan Garcia, é membro. Desde sua fundação, o grupo tem como mote a manutenção do regime fundiário vigente.
Segundo Fleury e Ribeiro, o plano do governo Sarney é esvaziado já no final daquela década, e a reforma agrária perde tração nos anos seguintes, em meio a uma economia conturbada e ao impeachment de Fernando Collor de Mello (1990-1992).
Ministério Extraordinário da Reforma Agrária
O primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) é marcado pelo assassinato de 11 pessoas pela Polícia Militar de Rondônia, em um ataque realizado durante a noite a um acampamento de sem-terra no município de Corumbiara. Barracos foram incendiados e corpos, carbonizados.
Em 1996, outros 19 sem-terra foram assassinados pela polícia militar em Eldorado do Carajás, no Pará. Conflitos fundiários ocorriam também em São Paulo, o estado mais rico da federação, e movimentos sociais ampliavam protestos, ocupações e marchas.
Em resposta à crescente tensão no campo, FHC cria em 1996 o Ministério Extraordinário da Reforma Agrária. O primeiro mandato de FHC é marcado pela aceleração dos assentamentos, que perdem ritmo em seu segundo mandato.
Sob FHC, a política é acompanhada de um patamar de desapropriações que não se repete nos governos seguintes.
Aceleração e desaceleração de assentamentos sob o PT
Eleito com uma plataforma de esquerda, o primeiro governo Lula acelerou os assentamentos. Ele lança já em 2003 o Segundo Plano Nacional de Reforma Agrária, com 36,3 mil assentamentos em 2003, atinge o pico de 136,3 mil famílias em 2006, mas fecha com o assentamento de 39,4 mil famílias em 2010.
Quando assumiu a Presidência, o governo Dilma Rousseff (2011-2016) sinalizou que, para ela, a prioridade era melhorar os assentamentos rurais existentes, sem desapropriar terras.
O governo Dilma foi alvo de críticas devido à desaceleração dos assentamentos, e reduziu drasticamente as desapropriações, a ponto de não levar nenhuma a cabo em 2015. Sob risco de impeachment, buscou se aproximar de movimentos sociais, e realizou desapropriações em 2016, em um nível, no entanto, baixo.
Após o impeachment, Michel Temer assume, mantendo o patamar baixo de assentamentos e desapropriações.
Por que a reforma agrária não desconcentrou terras?
A pesquisa de Fleury e Ribeiro foca no período entre 1985 e 2010, quando mais de 77 milhões de hectares de terra foram distribuídos a famílias de camponeses. Essa medida foi, no entanto, incapaz de reduzir a concentração fundiária no Brasil, afirmam.

“Era de se esperar que o ritmo de mais de dois milhões e meio de hectares de terra distribuídos por ano por meio da Reforma Agrária tivesse algum impacto positivo sobre a concentração da posse da terra no Brasil, fazendo-a diminuir. No entanto, os indicadores disponíveis sobre a concentração fundiária no Brasil mostram um quadro aparentemente paradoxal, afinal a concentração fundiária manteve-se nos mesmos patamares históricos”

Sebastião Ribeiro e Renato Fleury No artigo ‘Reforma agrária e concentração fundiária: uma análise de 25 anos de reforma agrária no Brasil’, publicado em 2016 na Revista Econômica do Nordeste

Os pesquisadores destacam que um dos motivos para tanto é exatamente o fato de que os assentamentos não ocorreram sempre em terras desapropriadas. Frequentemente, se deram em terras já pertencentes à União, o que os aproxima de colonizações.
Ao Nexo, Salém avalia que a política tem sido marcada até o momento por: “políticas de assentamentos feitas de maneira paulatina, lenta, que funcionam não com o objetivo de alterar a estrutura de propriedades do campo, mas de distensionar ou despressurizar um sistema concentrado”.
Esse sistema, diz, “dá todo o espaço para que grandes proprietários sigam ampliando as propriedades”. Apesar de não levar a reformas profundas na estrutura fundiária, ela avalia que o modelo tem sido eficaz em reduzir as tensões no campo.

“Quando se retira a válvula de escape de um sistema desigual, a tendência é que o conflito cresça, especialmente quando há um lado mais forte que o outro”

Joana Salém Doutoranda em história econômica pela USP, em entrevista ao Nexo.

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