Por Fernanda Rettore

A onça acordou preguiçosa, os olhos felinos semicerrados se abriram lentamente. O sol se infiltrava pelas densas folhas da selva, iluminava seu pelo dourado e as pequenas manchas marrons; vaidosa, apreciou a própria beleza com orgulho. Esticou as patas poderosas, exibindo as garras como adereços reluzentes. Bocejou forte, libertando um rugido contido, e sentiu na boca a secura característica do despertar das horas de sono. A sede a impulsionou para a beira do rio, onde as águas corriam frescas. 

Com passos largos e cabeça erguida, desfilou pelas passarelas verdes da floresta. De repente, seus olhos perspicazes notaram a presença de um casal de antas. Sorriu maliciosa, era a oportunidade perfeita para entreter-se. Sorrateira, ocultando o corpo musculoso entre a vegetação, pôs-se ao lado dos bichanos. Com toda força dos pulmões, rugiu alto! O estrondoso som fez as antas saltarem e fugirem em desespero, com os olhos arregalados denunciando o medo. Enquanto os mamíferos corriam assustados, a onça rolou no chão, gargalhando com a certeza de sua astúcia.

Secou as lágrimas que escorreram dos olhos com a parte de trás das patas e após recuperar-se da crise de risos, continuou sua jornada. Estava já próxima ao rio, quando avistou um tamanduá-bandeira distraído; ele passava a língua azul e comprida por um formigueiro, deliciando-se alegre. “Que alvo fácil”, pensou traiçoeira. Silenciosa como uma sombra, a onça se aproximou e com a pata pesada golpeou a lateral do corpo do tamanduá, que primeiro voou metros de distância e depois correu assustado. A onça, mais uma vez, caiu em risadas, deleitando-se com o próprio feito.

Enquanto seguia em direção ao rio, pensamentos convencidos permeavam a mente da onça. Considerava-se o símbolo da inteligência, da força e da beleza. Acreditava que o mundo ao redor era uma extensão do seu próprio reino. E a cada brincadeira, mortal ou não, aumentava sua convicção de ser a criatura mais extraordinária da selva.

Ao chegar à margem, ela admirou o próprio reflexo, extasiada com sua elegância selvagem. Bebeu a água gelada com os olhos fechados, refrescando-se por inteiro. Certa de sua solidão no local, assustou-se quando percebeu que a poucos centímetros um homem lavava seu bastão. A onça, incrédula com a ousadia daquele rapaz, observou-o atentamente. Com um olhar penetrante, encarou o homem querendo ler sua alma. Seu instinto selvagem questionava o porquê dele não sentir-se ameaçado por sua imponente presença. 

Decidida a demonstrar sua força, a onça se aproximou do rapaz, que continuava a lavar seu bastão no rio, alheio à intensidade da fera ao seu lado. Sem dizer nada, exibiu o corpo musculoso e as garras afiadas com imponência, deixando claro que ali estava a rainha que dominava a selva. Mas o homem parecia não perceber sua presença. Desistindo da estratégia silenciosa, abordou o homem, mas não antes de esconder suas intenções através de uma expressão facial neutra: 

— Olá, meu cunhado. Nunca te vi por essas bandas. Você é daqui? 

O homem, sem levantar o olhar, continuou a limpar seu bastão com uma serenidade que desafiava a natureza predatória da felina, e respondeu:

— Sou de todos os lugares. 

A resposta enigmática, sem qualquer sinal de temor, aguçou ainda mais a curiosidade da onça.

— Aqui na região sou bem popular… mas parece que você não me reconhece… me admira que ninguém tenha lhe alertado… 

O rapaz permaneceu em silêncio, sem fazer contato visual, ignorando completamente a provocação. A atitude impassível contrastava com a expectativa da onça, que aguardava uma reação à altura de sua majestosidade. 

A grande felina, porém, já não conseguia disfarçar o incômodo que a situação lhe causava. A falta de importância que o rapaz lhe dera atingiu o ego do animal, tocando em suas convicções sobre ser a soberana incontestável daquele território.

A irritação tomou conta do corpo da onça, e sua expressão, antes neutra, transformou-se em uma inquietação nervosa. Sentindo a necessidade de reafirmar sua presença, perguntou:

— Será que você é tão forte como eu? 

Sem hesitar, a onça subiu na árvore carimbé e a quebrou totalmente. Em seguida, pulou na árvore paricá e estraçalhou-a com força descomunal. A selvageria do ato visava despertar uma reação do rapaz, testando sua indiferença diante da demonstração de poder. Entretanto, ele permaneceu inalterável, como se o espetáculo da onça não fosse digno de sua atenção. O silêncio persistiu e criou tensão palpável. A onça, frustrada pela falta de resposta do homem, ponderou sobre o que mais poderia fazer para provar-se diante do forasteiro misterioso.

Movida por uma fúria incontrolável, destruiu toda a natureza que encontrou à sua frente. Arbustos e pedras voaram para todos os lados, enquanto buracos profundos no solo eram cavados com espantosa rapidez. Subiu em novas árvores, destroçando-as da mesma forma que fizera com as primeiras. Ainda assim, o homem permaneceu na mesma posição, concentrado em seu trabalho, de modo que nada extraordinário acontecesse ao seu redor. 

A onça, indignada com a persistente indiferença do rapaz, dirigiu-se ao homem com um olhar indignado e gritou ofegante: 

— Viu como sou forte, meu cunhado? Nada pode me deter! Irei lhe devorar, quebrar seus ossos, beber seu sangue e engolir sua carne!

A ameaça ecoou pela selva, e a onça aguardou alguns segundos, esperando que o homem ao menos desse o trabalho de olhá-la.  Contudo, o rapaz continuava inabalável, estranho à violência desencadeada pela fera ao seu lado. Revoltada com tal descaso, a onça sentou-se bem próxima ao homem e rugiu com toda a força de seu corpo felino! Seus urros ecoaram por toda a extensão da floresta, fazendo com que animais desavisados se escondessem em pânico.

O homem, então, se levantou calmamente. Com a cabeça ainda baixa, passou a girar seu bastão com destreza. A onça, confusa diante da ação desconhecida do rapaz e cansada de suas atitudes, pulou em sua direção, determinada a encerrar o desafio.

Antes que a onça pudesse alcançá-lo, uma trovoada saiu do bastão do homem, atingindo-a em cheio no peito e lançando-a a metros de distância. Atordoada, a felina despencou no chão, com a visão embaralhada e faíscas dançando diante de seus olhos.

O homem, imperturbável, caminhou na direção da onça. A fera tentou se levantar, mas antes que pudesse reagir, foi agarrada pelas pernas e arremessada do outro lado da margem do rio. Sem compreender completamente o que acontecia, a felina ficou imóvel por alguns segundos, até outro raio ser lançado contra ela.

Desesperada, então, iniciou uma fuga em busca de um abrigo; mas não havia como fugir, a cada passo, os raios do bastão a alcançavam, queimando seu interior numa dor aguda. Correu para os rochedos, mas um trovão azul partiu as rochas ao meio; subiu em árvores, mas os raios as consumiram em chamas; escondeu-se em um buraco de tatu, mas uma chuva de energia abriu toda a terra, revelando-a novamente, vulnerável e exausta.

O homem foi ao encontro da onça e a viu encolhida de medo, deitada sobre o próprio rabo, acuada como nunca estivera antes. A fera, que outrora percebia–se como a soberana indomável da selva, agora se encontrava diante de uma força desconhecida e avassaladora. 

O homem ergueu as mãos, prestes a enviar um raio direto no coração da onça, que pela primeira vez viu o rosto do rapaz: olhos completamente azuis e inquietos, revelando que aquele era Tupã! Com as mãos ainda erguidas e energizadas, Tupã disse:

— Tenha sempre humildade! Você, envaidecida pelo seu histórico de domínio na selva, foi confrontada por uma força superior que a humilhou! Percebe, então, sua arrogância?

Tupã abaixou as mãos e acrescentou com calma:

— Esteja aberta ao aprendizado contínuo e seja consciente de que o mundo é vasto e cheio de surpresas. Acreditar cegamente na própria invencibilidade pode te tornar vulnerável às reviravoltas da vida. O respeito ao próximo é uma virtude valiosa que nos ajuda a enfrentar os desafios com sabedoria.

E numa nuvem cinza, Tupã desapareceu. Mas a lição, ficou para sempre na onça. 


Referência Bibliográfica: MUNDURUKU, Daniel. A Onça Valentona e o Raio Poderoso, Mito do Povo Taulipang. In: Contos Indígenas Brasileiros. 2. ed. São Paulo: Global, 2005. p. 59-63.

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