da Redação
O juiz federal Pablo Baldivieso descumpriu decisão do ministro do Supremo, Edson Fachin, e ordenou reintegração de posse contra comunidade Pataxó; ordem de despejo das 24 famílias do Território Indígena Ponta Grande é inconsistente
A ideia de abrir um precedente para reivindicar as terras indígenas é um antigo desejo de gente poderosa da região. Neste momento, no sul da Bahia, mais uma aldeia indígena é ameaçada dentro do seu território. E o pior, em plena pandemia do coronavírus. Na ação judicial que contraria ordem do STF, o juiz ordenou a reintegração de posse da área onde vivem os indígenas, em favor da empresa de aviação Sky Dream, uma escola de pilotagem na região próxima ao município de Porto Seguro. Os moradores têm até esta quinta, 3 de setembro, para derrubar a liminar e evitar despejo com força policial.
A decisão do juiz, da Vara Judiciária de Eunápolis/BA, no último dia 20 de agosto, ocorreu em audiência em que estiveram presentes representantes do Ministério Público, Fundação Nacional do Índio, a Funai, e autores do pedido. Não houve representantes da aldeia Novos Guerreiros na ocasião. A possibilidade de desocupação movimentou a resistência indígena dos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália contra a medida durante a pandemia. “O povo Pataxó tem resistido há mais de 520 anos, estamos aqui em um território sagrado, dos nossos ancestrais para dar continuidade à nossa resistência, dar continuidade à nossa cultura, à nossa espiritualidade” afirma o Cacique Siratã Pataxó, presidente do Conselho de Caciques da região.
Indígenas são ameaçados dentro de territórios ancestrais
A empresa Fly Dream diz na ação que os povos indígenas invadiram a propriedade, de 401,02 m², com o objetivo de dividi-la em lotes e se apossarem da mesma, além de afirmar que os ocupantes estariam prejudicando o fluxo de aviões na pista de pousos do negócio. A proprietária do local, Maria Deusa de Almeida, demonstra má-intenção ao afirmar que “não são índios” os moradores da Aldeia dos Guerreiros.
No processo, o juiz Baldivieso registrou estranhamente que “a ocupação indígena na área não foi comprovada por estudos antropológicos, tampouco com documentos que digam que a área, específica, do clube de aviação realmente é objeto de demarcação”.
Thyara Pataxó, que mora a 200 metros das famílias ameaçadas pela liminar rebate a alegação. “A escola de aviação fica dentro do território. Ela fica na frente da área indígena, ao lado é área indígena, atrás é área indígena, tudo é área indígena! E aí eles estão questionando no processo deles que não é”, destaca. O Cacique Ararawe Pataxó também alerta que se a liminar não for derrubada, a comunidade indígena ficará em grande vulnerabilidade. “O único lugar que nós temos é esse território, é essa terra. Consagrada e dada pelos nossos ancestrais. Nós não podemos sair daqui, não temos para onde ir neste tempo de pandemia”, conclui.
Luta dos indígenas é pela demarcação de suas áreas
Atualmente, a luta dos Pataxós é pela revisão e demarcação da área ligada à Terra Indígena Coroa Vermelha, onde moram 1200 famílias, e que já não comporta o desenvolvimento das aldeias. De acordo com Thyara Pataxó, na Terra Indígena Ponta Grande existem cerca de 2500 famílias habitando toda a região.
A pesquisa sobre a área ainda está em andamento. No site da Funai, a TI Coroa Vermelha possui um estudo antropológico de reconhecimento das terras indígenas desde 27 de julho de 2017, na modalidade “tradicionalmente ocupada” e na fase de procedimento “em estudo”.
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“A gente sabe que os antropólogos estão estudando a maneira mais correta de aproveitar o momento oportuno para que a gente consiga finalizar este Grupo de Trabalho ”, expõe Siratã. Ele destaca que já mediram toda a área, acompanhados de todas as lideranças, mas que agora estão no aguardo de uma oportunidade para retomarem a pauta e garantir a demarcação.
O interesse do latifúndio da região é ameaça permanente à tranquilidade nas aldeias
O Cacique Siratã conta que em 2016 ocorreu uma reintegração de posse dentro da TI Coroa Vermelha e Ponta Grande para o povo Pataxó baiano. Uma grande mobilização das aldeias articulou órgãos do poder público para confirmarem que as terras pertencem à comunidade originária. A disputa na época foi contra Joaci Fonseca de Góes, empresário, jornalista, advogado e político que, inclusive, vendeu a área da Sky Dream para os atuais donos.
“Conseguimos mobilizar duas procuradoras que nos acompanhou. E nós, perante a audiência, demonstramos todo nosso conhecimento dentro do nosso território. Tivemos um prazo maior para poder colocar a Funai em ação”, relembra o cacique. O líder do Conselho de Caciques fala que essa foi uma conquista muito grande da união dos Pataxó. Na época, a outra parte no processo teve um prazo de 15 dias para revogar, mas não conseguiram a documentação suficiente para alegar posse. “O juiz acabou intimando a Funai para que entrasse com grupo antropológico para fazer o estudo. Nós tivemos ano passado o Grupo de Trabalho (GT) dentro do nosso território” explicou, Siratã.
Na última quinta, dia 26 de agosto, um ofício assinado pelo atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier Da Silva, surpreendeu os Pataxó afirmando que no caso não há defesa a ser feita pela fundação e que ocorreu “invasão de propriedade particular por indígenas”.
Siratã afirma que essa nota também tem sido discutida entre as lideranças do movimento e que estão muito preocupados com a situação. “Mas a nossa luta é que essas 24 famílias não saiam do seu lugar”, reitera. Ele conta que na área descrita pela liminar, não se encontra ninguém de seu povo. “O intuito do posseiro é utilizar esse processo em uma outra área que se encontram as famílias”, afirma, “só os indígenas que tem a ciência onde é a área que foi determinada”.
Pode um juiz federal contrariar uma determinação expressa do STF?
Até a pandemia do coronavírus acabar, o Supremo Tribunal Federal suspendeu todos os recursos e processos judiciais sobre reintegração de posse e cancelamentos de demarcação de territórios indígenas no país. Esta medida do STF é uma das estratégias para barrar a liminar contra a aldeia Novos Guerreiros, mas os desafios neste momento são complexos.
“Como ficar em casa numa situação em que estamos expostos?” questiona o Cacique Ararawe, para responder ele mesmo que “alguém nos forçou a estar”. Até o presente momento não houve casos da Covid-19 na aldeia, porém a preocupação é presente: “não está sendo fácil manter contato toda com as pessoas, parentes e outras comunidades que já tiveram casos”, conta Ararawe. “Mesmo usando máscara e álcool em gel, estamos expostos. Temos anciãos que são do grupo de risco. Por mais que a gente fale para essas pessoas ficarem em casa, elas têm sangue de guerreiro e querem também estar na luta”, desabafa.
Diversas etnias e movimentos indigenistas estão levantando esforços contra qualquer tentativa de desocupação com força policial na aldeia Novos Guerreiros nos próximos dias. Obrigados a defender suas terras em plena pandemia, a luta dos Pataxó para viver em paz no seu próprio território não está de quarentena.
Capa: Vanessa Pataxó