FONTE: Estado de Minas
Investigação da força-tarefa encarregada de apurar a catástrofe indica que a Vale optou por substituir empresas que apontavam fragilidade na barragem que se rompeu em janeiro, em vez de sanar falhas que ameaçavam estrutura
Não apenas um. Foram vários os alertas à mineradora Vale de que cálculos usados para atestar a segurança da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, não estavam dentro dos padrões aceitos na mineração. Avisos surgiram de auditorias externas, de empresas de engenharia e de especialistas internacionais independentes. A mineradora preferiu ignorar e burlar normas de segurança, inclusive parâmetros adotados pela própria empresa, apontam as investigações sobre a catástrofe que ontem chegou a duas centenas de mortes comprovadas, com 108 desaparecidos. Segundo as apurações, a companhia operou com índices abaixo dos considerados toleráveis, amparada sempre pelo mesmo “modus operandi”: contratar terceirizadas dispostas, para não perder contratos, a usar metodologias questionadas no meio e, se preciso fosse, substituir quem se recusasse.
Desde novembro de 2017, foram pelo menos três advertências em relação à represa de Brumadinho, estudos com resultados maquiados, consultorias que assinaram declarações de estabilidade fora dos índices estabelecidos pela própria companhia e um vaivém de prestadoras de serviço, em uma aparente busca por aquelas que se enquadrassem na rotina da Vale. Os resultados assustavam até mesmo quem estava na linha de frente da mineradora. Tanto que um gerente-executivo preso na última operação da força-tarefa que investiga a catástrofe em Brumadinho classificou a barragem como “tenebrosa”.
As informações constam em documentos da força-tarefa, aos quais o Estado de Minas teve acesso. O histórico dos critérios de avaliação de confiabilidade das represas remontam – pelo menos teoricamente – ao rompimento da Barragem do Fundão, operada pela Samarco, em Mariana (Região Central do estado), em 2015. Na ocasião, houve mudanças na política nacional de segurança de barragens e também na organização interna da Vale. A empresa criou um setor específico para aperfeiçoar a gestão de risco na área de barragens e promoveu painéis independentes de especialistas para discussão e aconselhamento sobre a gestão de risco e segurança de estruturas geotécnicas, dos quais participavam também diretores setoriais e outros integrantes da mineradora.
A investigação de promotores, procuradores e policiais civis mostra que o Independent Panel of Experts for Safety and Risk Management of Geotechnical Structures (Piesem) – Painel de Especialistas para o Gerenciamento de Segurança e Risco de Estruturas Geotécnicas – , de novembro de 2017, recomendou expressamente que a Vale adotasse para suas barragens um fator de segurança maior ou igual a 1,3, quando em condição não-drenada – que era a situação da Barragem B1. Traduzindo: esse era o limite que a estrutura deveria ter para afastar o risco de rompimento, quando estivesse com água. “Quando ela não está drenada, é como um caldo”, explica o engenheiro hidráulico Carlos Barreira Martinez, professor da Universidade Federal de Itajubá e da pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais.
Nesse mesmo painel de novembro de 2017 – quando a tragédia de Mariana completava dois anos –, os especialistas concluíram que “os testes de laboratório que vinham sendo usados pela Vale na metodologia para a verificação da estabilidade de barragens de rejeitos não eram confiáveis e não estavam sendo consistentemente interpretados”. Por isso, os testes e os resultados deveriam ser interrompidos e adotados testes de campo. Na mesma época, a estabilidade da Barragem 1 vinha declarada com base no relatório da inspeção semestral de segurança, fruto do resultado de testes de laboratório produzidos pela Geoconsultoria, cuja metodologia foi expressamente condenada pelo painel.
Ainda de acordo com as apurações, também no fim de 2017, a Potamos Engenharia e Hidrologia, contratada pela Vale para apontar o risco financeiro da Barragem 1, reiterou à mineradora a recomendação do painel internacional de descartar os resultados obtidos em laboratório. E condenou as análises da Geoconsultoria. A Potamos informou à Vale, depois de estudos de campo, que o cálculo de estabilidade para a condição de resistência não-drenada de pico da barragem resultava, na verdade, num fator de segurança de 1,06 – abaixo, portanto, do 1,3 recomendável.
Mas, contrariando o próprio anúncio de ser mais rigorosa nesse quesito, a Vale assumiu, em março de 2018, nova declaração de estabilidade, esta feita pela Tractebel Engeneering, que também se valeu dos estudos da Geoconsultoria. A situação da barragem de Brumadinho foi analisada em painéis por especialistas, consultores e representantes da Vale, por ser considerada “naquele meio acadêmico e técnico como uma estrutura que inspirava grande atenção”, de acordo com a força-tarefa.
Em e-mail encaminhado em 31 de julho de 2018 a um consultor externo, o gerente-executivo de Geotecnia Operacional da mineradora, Joaquim Pedro de Toledo, se referiu à represa como “mais tenebrosa do que imagino”. Ele foi preso no dia 15 do mês passado, junto de outros sete empregados de cargos executivos e técnicos da mineradora, que respondem a processos criminais, mas já estão em liberdade.


Gestores de risco ignoravam alertas
Em junho de 2018, a alemã Tüv Süd apresentou declaração de estabilidade da barragem, apesar de os estudos apontarem o fator de segurança igual a 1,09. Embora mantida a orientação para um limite mínimo de 1,3, o documento também foi assinado pela gigante da mineração. Em depoimento, engenheiros da empresa de consultoria alemã informaram tratar-se de prática recorrente da mineradora. A força-tarefa concluiu que a área de geotecnia corporativa, criada depois do desastre de Mariana para fazer a gestão de risco, trabalhou em sentido oposto. Passou a atuar de maneira sistemática para alcançar declarações de estabilidade de barragens de estruturas que não atendiam aos parâmetros legais e estipulados pela própria empresa.
Em mais de uma ocasião o setor de geotecnia corporativa substituiu auditores externos que se negaram a fornecer declarações convenientes à mineradora, indica a investigação. Um exemplo é a própria Tractebel, substituída imediatamente pela Tüv Süd após informar, em setembro, que não seria possível declarar a estabilidade da barragem, diante de estudos que apontavam o fator de segurança de 1,09 – embora, seis meses antes, essa mesma empresa houvesse emitido declaração com fator de segurança ainda mais abaixo desse limite. Como resposta, a Vale comunicou à auditoria que em razão da “divergência de critérios utilizados para avaliação de segurança geotécnica, para o modo de falha de liquefação”, a empresa não mais seria responsável por conduzir os trabalhos de inspeção de segurança regular do ano.
Promotores, procuradores e policiais civis são enfáticos ao afirmar que há evidências de que havia uma política da Vale de obter declarações de estabilidade de barragens de forma indevida, “mesmo sabedora de que se tratava de estruturas com risco elevado, capazes de vitimar, no caso de sua ruptura, número significativo de pessoas e causar danos ambientais e patrimoniais de grande vulto”, relatam.
A premissa para celebrar contratos, avaliam os investigadores, era a emissão dos documentos de confiabilidade da estrutura. A prática tinha o objetivo de garantir a continuidade das atividades da empresa, sem embaraços com órgãos ambientais.
Procurada, a Vale sustentou em nota que nenhum depoimento de seus funcionários “indica conhecimento prévio de cenário de risco iminente de ruptura da barragem”. “As questões apontadas nas auditorias vinham sendo atendidas sob a orientação das próprias empresas de auditoria. Ao contratar uma empresa de auditoria de renome mundial, como a Tüv Süd, a Vale esperava que os auditores tivessem responsabilidade técnica, independência e autonomia na prestação de serviços. As alegações da Tüv Süd de terem sofrido ‘pressão’ nos levam a crer que os funcionários da própria Tüv Süd teriam adotado condutas inidôneas gravíssimas, violado o seu dever e função como auditores independentes”, acrescentou a mineradora.
Segundo a companhia, a barragem que viria a se romper “passou por inspeções em 8 de janeiro e 23 de janeiro de 2019”. “Em nenhuma dessas inspeções foi detectada alteração no estado de conservação que expusesse situação de risco iminente de ruptura da estrutura.”
Estado de Minas procurou a Tractebel para se manifestar sobre a questão, mas a empresa informou que não comenta as apurações e continua contribuindo com as autoridades. O sócio-diretor da Geoconsultoria, Paulo César Abrão, contesta as análises dos especialistas referentes à metodologia usada pela empresa, há 50 anos no mercado. Informou que seu posicionamento sempre foi de se adotar ensaios de laboratório, em conjunto com ensaios de campo, para a determinação da equação de resistência dos materiais presentes na barragem e nas análises de estabilidade.
Informou que as técnicas adotadas têm similares em outros países e que não defende o “uso de resultados errados na geotecnia”. Acrescentou que presta serviços à Vale, “como a maioria das empresas de engenharia do país”, mas que nunca houve pressão da mineradora para apresentar resultados convenientes à atividade econômica. “Toda e qualquer metodologia por nós utilizada, seja em projetos seja em consultorias, sempre tem uma base técnica sólida, em geral já adotada pelo setor de mineração.”

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