A Câmara dos Deputados aprovou com folga (324 votos a favor e 131 contra) o requerimento de urgência para o PL do marco temporal na demarcação de terras indígenas (PL 490/07). O projeto, na forma do substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), restringe a demarcação de territórios àqueles já ocupados em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O PL deve ser votado na próxima semana. Quaisquer propostas que não respeitem o artigo 231 da Constituição Federal, que assegura aos indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, são inconstitucionais. E qualquer ato que impeça a defesa dos indígenas, pelo artigo 232, também é ato inconstitucional. É o que ocorre com o PL 490, um Projeto de Lei de 2007, que permite ao governo tirar a posse de áreas demarcadas há décadas. Ele altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) e atualiza o texto da PEC 215 que retira dos indígenas direitos assegurados pela Constituição de 88, como a posse permanente de suas terras e o direito exclusivo sobre seus recursos naturais. Portanto, a agressão é também ao meio ambiente, pois viabiliza a legalização automática de centenas de garimpos nas TIs, hoje responsáveis pela disseminação de crimes ambientais, violação de direitos humanos,  contaminação por mercúrio, destruição de nascentes, de rios inteiros e o desmatamento

O marco temporal é uma interpretação defendida pelos interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. Com ele, os indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Portanto, desconsidera expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas antes de 1988 (indígenas não podiam entrar na Justiça de forma independente), além de anular tudo o que foi conquistado e retomado depois de 88.

Dados de 2021, apontavam 435 terras indígenas regularizadas no país e 231 processos demarcatórios paralisados, com 536 pedidos indígenas de constituição de grupos de trabalho para identificação de terras tradicionais. Com o congelamento dos processos de demarcação na FUNAI, decorrente de ações judiciais propostas por ocupantes não-indígenas, e que pleiteiam a posse da terra indígena que já ocupam ilegalmente, as demarcações estão paralisadas.

Julgamento da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ será decisiva na tentativa de aprovar o marco temporal

O Supremo Tribunal Federal voltará, a partir de junho, ao julgamento da ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, e refere-se à TI Ibirama-Laklãnõ, território onde vivem também os povos Guarani e Kaingang. O julgamento tem status de repercussão geral, o que significa que a decisão será o Norte para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça sobre procedimentos demarcatórios, anulando antecipadamente qualquer tentativa de inclusão do marco temporal. 

O julgamento estava suspenso por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes. Apenas o voto contra o marco temporal do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado. Outro pedido de vistas pode adiar por mais tempo a decisão. A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.

Posição da Funai

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), presidida por Joenia Wapichana, fez um alerta para os riscos que o Projeto de Lei 490/07, em tramitação no Congresso, e o marco temporal, em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), representam para os direitos dos povos indígenas. Foi durante audiência pública sobre o tema nesta terça-feira (16) na Comissão de Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais; Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, em Brasília.

Segundo Joenia Wapichana, o PL 490/07 e seus projetos apensados são um risco. Em nenhum momento, por exemplo, se teve o cuidado de consultar os povos indígenas sobre as propostas, o que é exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Esse projeto sequer poderia estar tramitando nesta Casa”, pontuou. Na ocasião, Joenia Wapichana defendeu que o Congresso se debruce sobre propostas que garantam os direitos dos povos indígenas, e não o contrário. A presidenta da Funai também lembrou que o julgamento do marco temporal está pautado para junho pelo STF. “É uma oportunidade que o Supremo tem de decidir definitivamente e enterrar o marco temporal e, assim, colocar um ponto final em qualquer alegação que vise reduzir os direitos constitucionais dos povos indígenas, fazendo também com que o PL 490/07 seja de uma vez por todas considerado inconstitucional”, ressaltou.

Requerida pela deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG), a audiência também teve a participação do secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena; do representante da Articulação dos Povos Indígenas (APIB), Maurício Serpa França; do representante da Articulação dos Povos Indígenas da região Sul (ARPINSUL) e da Comunidade Indígena Xokleng, Brasílio Pripá, da assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, Priscila Terena; e do doutor e mestre em Direito, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Carlos Frederico Marés de Souza Filho, do coordenador-geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Paulo Tupiniquim, e do coordenador-executivo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Jaime Siqueira.

Indígenas enfrentando balas de borracha e gás lacrimogênio na votação do PL 490 na CCJ em 2021

Projeto de Lei n° 490/07

Apresentado pelo deputado federal Homero Pereira, em 2007, o PL 490/07 tinha como proposta alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, trazendo para o Poder Legislativo a competência das demarcações das terras indígenas no Brasil. Atualmente, esse procedimento é feito administrativamente pelo Poder Executivo Federal.

O PL nº 490/2007 reúne inconstitucionalidades, pois afronta direitos de caráter fundamental assegurados pela Constituição Federal e fere o princípio de separação de poderes. O suposto objetivo é regulamentar o art. 231, da Constituição Federal, que versa sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil. Nesse mesmo sentido, o projeto também confronta o Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que “Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas”.

Desde sua apresentação, o PL já acumulou 13 projetos apensados e, recentemente, recebeu um texto substitutivo, apresentado pelo deputado federal Arthur Maia. O novo texto estabelece exploração hídrica, expansão da malha viária, exploração de alternativas energéticas, garimpeiras e mineradoras; todas implementadas independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai.

Segundo o novo texto, o contato com povos isolados fica flexibilizado, proíbe-se a ampliação de terras já demarcadas e se fixa a teoria do marco temporal, que define como terras indígenas apenas aquelas ocupadas quando da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Trata-se de um dos principais projetos que afrontam os direitos constitucionais dos povos indígenas. O autor da proposta alega que a “demarcação de terras indígenas extrapola os limites de competência da Funai, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Alega, ainda, que a demarcação de terras indígenas é feita por critérios subjetivos da Funai.

Com essa afirmação, demonstra desconhecer a profundidade e complexidade do processo de demarcação de terras indígenas em vigor no Brasil, bem como subjuga um processo técnico e legal já consolidado e chancelado pelo Supremo Tribunal Federal em diversas manifestações. O PL nº 490/2007 também afronta normativas internacionais das quais o Brasil é signatário como a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada no Brasil pelo Congresso Nacional.

A convenção prevê o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé aos povos indígenas, sendo necessária a consulta no caso de medidas legislativas como a que está em andamento, visto que os afeta diretamente. Tanto o autor quanto o relator do PL desrespeitam a convenção ao não consultarem os povos indígenas sobre a proposta. Já o parágrafo único do art. 21 do PL propõe que “ações justificadas pela segurança nacional poderão ocorrer “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”, atacando os direitos fundamentais dos povos indígenas, originariamente considerados inalienáveis pela Constituição. Demarcar é uma competência exclusiva do Poder Executivo, conforme a Constituição Federal, pois se trata de processo meramente administrativo: o direito dos povos indígenas à terra é originário, ou seja, nestas terras eles estavam antes da formação do Estado Nacional.  

Com informações da Agência Câmara de Notícias e Ministério dos Povos Indígenas.

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