FONTE: Nexo
Ministério da Agricultura, comandado por representantes do agronegócio, ganha poderes nas demarcações no governo Bolsonaro
Um dos primeiros atos do presidente Jair Bolsonaro após a posse, no dia 1º de janeiro de 2019, foi publicar no Diário Oficial uma medida provisória que reorganiza a estrutura dos ministérios e dos órgãos da Presidência da República.
Entre as mudanças está a forma como o país demarca e concede títulos relativos a terras indígenas e quilombolas. Agora, quem vai conduzir todo o processo é o Ministério da Agricultura, comandado pela ex-presidente da bancada ruralista na Câmara Tereza Cristina.
O que mudou na definição de terras indígenas e quilombolas
Ministério da Agricultura, comandado por representantes do agronegócio, ganha poderes nas demarcações no governo Bolsonaro
Um dos primeiros atos do presidente Jair Bolsonaro após a posse, no dia 1º de janeiro de 2019, foi publicar no Diário Oficial uma medida provisória que reorganiza a estrutura dos ministérios e dos órgãos da Presidência da República. Entre as mudanças está a forma como o país demarca e concede títulos relativos a terras indígenas e quilombolas.
Agora, quem vai conduzir todo o processo é o Ministério da Agricultura, comandado pela ex-presidente da bancada ruralista na Câmara Tereza Cristina.
A questão fundiária
TERRAS INDÍGENAS
O processo de demarcação e registro foi transferido da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura. A Funai passou do Ministério da Justiça para a nova pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos.
TERRAS QUILOMBOLAS
O processo de demarcação e titulação foi transferido do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), vinculado desde 2016 à Casa Civil, também para o Ministério da Agricultura.
O que é uma medida provisória
A medida provisória do dia 1º de janeiro prevê que o detalhamento da organização dos órgãos alterados seja definido por meio de decretos.
Medidas provisórias têm força de lei a partir do momento em que são editadas, mas para que se mantenham definitivamente precisam ser aprovadas pelo Congresso Nacional em um período de 60 dias, prorrogável por outros 60.
Caso não sejam votadas em 45 dias, elas se tornam um empecilho: a pauta de votações de outras proposições é suspensa, e passa a ocorrer apenas em sessões extraordinárias. Se não forem votadas no prazo de 120 dias, os parlamentares devem editar um decreto legislativo para disciplinar os efeitos gerados durante sua vigência.
O que ainda está indefinido
Desde meados de dezembro de 2018, o governo Bolsonaro tem feito anúncios e recuos sobre demarcação e titulação de terras. Após a posse, a ministra da Agricultura voltou a afirmar que uma nova Secretaria de Assuntos Fundiários será criada em sua pasta para lidar com políticas fundiárias, inclusive com a reforma agrária.
Se os primeiros anúncios sobre o tema forem levados a cabo, ela deverá ser comandada por um amigo pessoal de Bolsonaro, Nabhan Garcia.
Ele é membro da UDR (União Democrática Ruralista), um grupo criado por grandes proprietários de terra em 1985 como reação à política de reforma agrária promovida no início do governo de José Sarney (1985-1990). Desde sua fundação, a UDR tem como mote a manutenção do regime fundiário vigente.
Tereza Cristina também afirmou que demarcações podem vir a ser definidas por um conselho formado por vários ministérios, a ser criado.
Pelo modelo que o país vem aplicando, quando uma terra indígena é demarcada sua posse é garantida ao povo que a ocupa, mas a propriedade permanece sendo da União, por isso fala-se em “demarcação”. Os quilombolas, por outro lado, recebem títulos coletivos de propriedade de suas terras, por isso fala-se em “titulação”.
Em ambos os casos, os povos não podem vender ou arrendar as terras, pelas regras que vêm sendo aplicadas até o momento.
Um dia após a publicação da medida provisória, uma reportagem do jornal O Estado de São Paulo afirmou que o governo pretende, no entanto, liberar, por meio de um decreto, o arrendamento de terras indígenas para todo tipo de produção.
A informação foi confirmada pela diretora de proteção territorial da Funai, Azelene Inácio, empossada em 2017, durante o governo de Michel Temer.
A posição do presidente
Antes, durante e depois de sua campanha, Bolsonaro criticou demarcações e titulações, e defendeu que as regras se aproximassem daquelas empregadas para as terras privadas.
Em pré-campanha, no dia 3 de abril de 2017, disse em um discurso no clube Hebraica, na zona sul do Rio de Janeiro que não demarcaria terras. No mesmo evento, comparou quilombolas a animais de procriação.
O Ministério Público Federal ajuizou uma ação contra Bolsonaro por danos morais a quilombolas e ao resto da população negra. Bolsonaro foi condenado em primeira instância, recorreu e foi absolvido em setembro de 2018. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, que rejeitou a denúncia por entender que o político gozava de imunidade parlamentar na época da fala.
Já em campanha oficial, Bolsonaro defendeu, em um vídeo publicado em julho de 2018 nas redes sociais, que terras quilombolas passassem a poder ser vendidas e seus recursos, explorados “de forma racional”, “a exemplo de seu irmão fazendeiro do lado”.
Em entrevista à TV Bandeirantes em outubro de 2018, criticou a demarcação de terras indígenas e defendeu que pudessem ser arrendadas. Depois de eleito, em encontro com parlamentares do DEM no dia 12 de dezembro de 2018, foi aplaudido ao afirmar: “não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena. Ponto final”.
As garantias constitucionais e os decretos
A Constituição Federal de 1988 define que indígenas e quilombolas têm direito à posse de suas terras tradicionais, e que esse direito deve ser garantido pelo Estado brasileiro.
As regras da demarcação de terras indígenas foram definidas por meio do decreto 1.775 de 1996, estabelecido no governo de Fernando Henrique Cardoso, que definia que o processo seria realizado pelo órgão indigenista oficial, a Funai.
O procedimento para garantir a titulação de terras quilombolas foi regulamentado em 2003, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do decreto 4.887.
A comunidade deve apresentar as “peças técnicas” necessárias para obter um certificado de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, agora extinto. O título de terra era então requerido ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), responsável pela titulação.
No dia seguinte à medida provisória que definiu a transferência das atribuições à sua pasta, a recém-empossada ministra da Agricultura, Tereza Cristina, negou que a mudança resultaria em menos demarcações. “De jeito nenhum, não vamos arrumar um problema que não existe. É simplesmente uma questão de organização.”
Duas opiniões quanto às alterações
O Instituto Socioambiental, uma ONG ambiental e de defesa dos direitos dos povos indígenas, enviou uma nota ao Nexo na qual disse que a transferência da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura “subordina os direitos fundamentais dessas minorias aos interesses imediatos de parcelas privilegiadas do agronegócio, parte diretamente interessada nos conflitos fundiários”.
O Nexo conversou também com Pedro de Camargo Neto, que é pecuarista e vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira. Ele avalia que “a Constituição de 1988 garantiu direitos ao homem indígena, porém não deixou clara a questão da terra”, e que o arranjo anterior, em que a Funai definia quais demarcações ocorriam, vinha gerando a judicialização das demarcações até essas chegarem ao Supremo Tribunal Federal. Ele defende, no entanto, que o Congresso aprove uma legislação que retire a questão do discernimento do Executivo.
O que sobra para a Funai
A Fundação Nacional do Índio existe desde 1967. O órgão foi criado por meio da lei nº 5.371, durante a ditadura militar. Na época, o presidente era o general Costa e Silva. O órgão substituiu o Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910.
Agora sem poder demarcar terras, o órgão permanece com as funções de monitoramento da população indígena, implementação de políticas de proteção a povos isolados, identificação de novos povos, promoção de ações de desenvolvimento, conservação e recuperação ambiental nas terras indígenas, entre outras competências.
A Confederação da Agricultura Familiar