FONTE: Extra Classe

Responsável por 80% dos casos de câncer no mundo, exposição a agentes químicos é mais letal nas regiões agrícolas em que a cultura dos defensivos agrícolas predomina. No RS, estado que despejou quase 100 mil toneladas de veneno nas lavouras em apenas dois anos e onde o consumo per capita é de 30 litros de agrotóxicos por ano, o dobro da média do país, o câncer é a primeira causa de morte em 140 municípios. Na região Noroeste, em média dez agricultores são diagnosticados com câncer por dia
A agricultora Fabiane Lange, 35 anos, ficou vários dias sem poder ir à lavoura no mês de abril devido ao desgaste físico provocado pelas sucessivas sessões de quimioterapia’. Desde junho de 2016, ela divide o tempo entre a lida na plantação e o tratamento para debelar um câncer de mama, descoberto quando estava grávida de seis meses do segundo filho – e aguarda por uma mastectomia agendada para julho. Ela afirma que nunca manuseou agentes químicos, mas tem convicção de que a doença está associada ao contato indireto com os defensivos agrícolas utilizados nas lavouras de soja que circundam a pequena propriedade da família, na localidade de Esquina Progresso, zona rural de Tiradentes do Sul, no Noroeste do estado. “Usam o 2-4D, que é um agrotóxico pesado. Num ambiente onde o nível de contaminação vai para o solo, para a planta, para o pasto que alimenta as vacas, o câncer vem junto”, aponta. A desconfiança da agricultora faz sentido, como evidenciam pesquisas que associam de forma cada vez mais contundente o uso de agrotóxicos à incidência de câncer.
O Rio Grande do Sul deve registrar neste ano 54,8 mil novos casos de câncer, de acordo com estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca). A estatística posiciona o estado no quarto lugar do ranking nacional, liderado por São Paulo (141.250), que tem Rio de Janeiro (62.230) e Minas Gerais (57.590) como os estados com maior ocorrência dos mais diversos tipos de cânceres. Dos casos registrados no RS, 15.570 neoplasias são de pele não melanoma, 8.170 em outras partes do corpo e 6.210 de próstata. Um total de 7.670 dessas ocorrências, de acordo com o Inca, será em Porto Alegre. Em todo o país, o Instituto prevê 600 mil novos casos e projeta igual número para 2019. O cenário da doença é ainda mais delicado se visto por levantamento inédito do Observatório de Oncologia do movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM). Com base em dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde (MS), o estudo revela que o câncer é a principal causa de mortes em 516 dos 5.570 municípios brasileiros, ou seja, em 10% das cidades. O RS lidera com o maior número de municípios (140) onde o câncer é a primeira causa de morte.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que 80% dos casos de câncer são atribuídos à exposição a agentes químicos. No RS, mais de 92 mil toneladas de agrotóxicos foram usadas entre 2012 e 2014, de acordo com o Atlas do Agrotóxico, lançado no ano passado, com base em dados do Sistema Nacional de Atendimento Médico (Sinam). A pesquisa alerta que dos 504 ingredientes ativos vendidos no Brasil, um total de 140, ou 30%, estão proibidos na União Europeia. “Os casos que temos de intoxicação são sempre a ponta do iceberg de algo mais complexo, de doenças crônicas como o câncer. O mapeamento desses casos agudos ilustra uma situação mais profunda. É possível afirmar essa correlação”, diz a coordenadora do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP) e autora do Atlas, Larissa Bombardi. Junto com outros profissionais, ela constrói agora outro estudo, que promete ser ainda mais impactante: mostrar as conexões entre más formações fetais e câncer e os agrotóxicos.
Para a pesquisadora, há uma série de fatores que induzem à cultura dos agrotóxicos. Após os anos 1960, os pacotes de crédito rural obrigam os pequenos produtores a usar uma parte dos recursos para insumos químicos, exemplifica. “O pequeno agricultor é a vítima, não o vilão. É a mesma discussão de muitos anos dos efeitos do tabaco. Os agricultores são induzidos a uma agricultura de dependência química que já passou para a quarta geração, algo difícil de ser quebrado, pois as famílias dependem disso. Uma realidade que precisa ser enfrentada com políticas públicas”, sinaliza.
PERMISSIVIDADE – A lei de agrotóxicos, de 1989, estabelece que o registro de uma substância é permanente, ou seja, nunca caduca, permitindo, no máximo, que o produto seja reavaliado. Foi o que ocorreu recentemente com o Paraquat, ingrediente ativo mutagênico e indutor do Mal de Parkinson, que foi banido em 2017 e voltou a ser liberado pela Anvisa. “O projeto político desse governo é ampliar ainda mais a permissividade. O Atlas mostra que para algumas culturas aumentamos de 30% a 50% a quantidade de agrotóxicos permitidos e que são proibidos na União Europeia. Nos citros tínhamos 70 proibidos, agora temos 116. Na soja, eram 120, agora 150. Varia no mínimo 30% a mais”. Enquanto isso, tramita no Congresso o “Pacote do Veneno”, um conjunto de projetos apensados que revogam a atual Lei dos Agrotóxicos e facilitam o registro de substâncias, inclusive aquelas banidas em outros países.
Transtornos mentais, depressão e câncer
A pesquisadora do Inca e uma das autoras do Dossiê Abrasco – Os impactos dos Agrotóxicos na Saúde, a toxicologista Márcia Sarpa Campos Mello, que investiga desde 2001 as conexões entre câncer e agrotóxicos em populações rurais, afirma que dados de estudos experimentais confirmam a relação direta da exposição a esses produtos no desenvolvimento de tumores e de câncer em seres humanos. “Há alguns tipos mais comuns relacionados a essa exposição, como o linfoma de Hodgkins, que não é um tumor sólido, mas um câncer relacionado ao sistema linfático. E também dados que indicam aparecimento de câncer de mama e próstata a partir da exposição contínua no ambiente de trabalho ou então a exposição ambiental de pessoas que moram perto de lavouras que usam esses agrotóxicos”, afirma.
O trabalho de Márcia é in loco, e consiste em uma investigação epidemiológica, por meio de questionários e também em avaliação clínica e laboratorial, através da coleta de sangue dos trabalhadores para verificar o aparecimento de danos ao DNA. “E o dano ao DNA é a primeira etapa no desenvolvimento de um câncer futuro. Fazemos esse monitoramento dos trabalhadores, para saber se já há algum dano ao longo do tempo, e para afastá-los, conscientizar para que parem de usar agrotóxicos e partam para uma produção mais ecológica”, explica.
Outro efeito nocivo dos agrotóxicos, enfatiza Márcia, é a desregulação endócrina, já comprovada em animais. “Essa desregulação dos hormônios está diretamente ligada a alguns tipos de câncer que têm ligação com o sistema hormonal. Por exemplo, o câncer de mama, que está ligado à exposição dos estrógenos. Alguns agrotóxicos têm potencial de mimetizar, imitar o efeito do estrógeno”, esclarece. Em 2016 o Inca realizou uma investigação conjunta com a prefeitura de Dom Feliciano, município de 15 mil habitantes, em que 86% do PIB provêm da produção de fumo, na qual foram entrevistados 800 trabalhadores de plantações de tabaco. “A partir do aumento de casos de transtornos mentais e depressão, encontramos resultados que associaram isso à exposição aos agrotóxicos”, resume.
Agrotóxicos: uma morte a cada dois dias e meio
O Mapa Brasil – Intoxicação de Agrotóxico de Uso Agrícola por Unidade da Federação, escancara que mais de 25 mil intoxicações foram registradas no período 2007 a 2014, totalizando 3.125 ao ano ou oito intoxicações por dia. O saldo dessas intoxicações: 1.186 mortes, 148 por ano ou uma a cada dois dias e meio. Entre os mortos nesse período de sete anos estão 343 bebês, que materializam a pior fotografia do impacto do uso de agrotóxicos no Brasil. As estatísticas, no entanto, estão subestimadas. Os pesquisadores acreditam que para cada caso registrado, 50 outros não são notificados, o que permite calcular que a soma de registros de intoxicação por agrotóxicos alcançaria 1,250 milhão de ocorrências.
Na quinta posição do ranking de maiores negociadores de agrotóxicos, o RS, até 2013, comercializou 104 milhões de quilos desses produtos para 8.761.460 hectares de área plantada, na proporção 11,91 quilos por hectare, diz o Mapa Brasil. O Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs) apurou 112 óbitos no RS entre os anos de 2010 e 2016, envolvendo agrotóxicos e pesticidas. Do total de mortes, 91 foram por autointoxicação. Os dados de 2017 ainda estão sendo compilados. As causas mais comuns são autointoxicação e envenenamento por exposição intencional ou não aos produtos. Os locais para essas ocorrências variam de residências, áreas coletivas, ruas, estradas, comércios e fazendas.
A região Noroeste gaúcha é uma das campeãs no país no uso dos químicos em milhares de propriedades rurais. Coordenador do Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon), do Hospital de Caridade de Ijuí (HCI), que atende pacientes de 126 municípios da região, o médico Fábio Franke é enfático ao afirmar que agrotóxicos e câncer andam juntos. “Fica cada vez mais forte a evidência de que a exposição a esses agentes, seja pelo trabalhador rural que aplica ou recebe através de pulverizações agrícolas, seja no consumo de alimentos a longo prazo, isso pode causar câncer”, destaca Franke. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), cada brasileiro consome 15 litros de agrotóxicos por ano. No Rio Grande do Sul, esse consumo salta para 29 a 30 litros per capita. “E somado a isso temos as nossas estatísticas. Comecei a perceber o alto índice de pacientes com câncer, de trabalhadores rurais. Obviamente precisaria de alguma pesquisa técnica para afirmar isso com toda certeza, mas existe projeto nosso com a área de agronomia e com a Unijuí para identificar nos pacientes com câncer a presença do glifosato. Mas tudo que temos aqui já serve de alerta”, garante o médico. Na rotina do HCI, a média mensal é de 300 novos casos de câncer, ou 3,5 mil ao ano. “E isso está correlacionado ao aumento no tempo de vida e fatores externos, como alimentação, tabagismo e agrotóxicos”.
Fiscalização
Segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), nos últimos 17 anos o combate a agrotóxicos contrabandeados e falsificados resultou na apreensão de 529 toneladas, o que representa aproximadamente 6 milhões de hectares e 15 bilhões de quilos de alimentos que deixaram de ser tratados com produtos ilegais.

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