Por Fernanda Rettore
Vozes em coro gritaram de susto e incredulidade quando Jurupari e Seuci cruzaram os limites da aldeia. O tempo havia esculpido suas histórias e os transformado em lendas impalpáveis. Os rostos descrentes, os concebiam como fantasmas retornando do reino da morte. Jurupari, agora visível aos olhos que antes o procuravam em vão, e Seuci, carregando a marca dos anos passados em seu semblante, traziam consigo uma aura de mistério.
Contudo, foi da boca da avó de Jurupari, agora uma senhora fragilizada pela idade avançada, que um suspiro de felicidade emergiu intenso. As lágrimas escorriam fluviais pelo seu rosto enrugado, acompanhadas, em seguida, pelo choro profundo de Seuci e de Jurupari. Com alegria e gratidão, se abraçaram e celebraram o reencontro improvável. E, enquanto o abraço caloroso selava o instante, o restante da aldeia entendeu o que se passava e vibrou em harmonia com aquele espetáculo lindo e estranho.
Na mesma noite, acenderam uma fogueira imponente, que lançava as sombras dos corpos dançantes no chão ao seu redor. As pessoas entrelaçavam-se no compasso da dança fervorosa, pulsando em uníssono pelo renascimento da esperança: o retorno da mãe e do filho sagrado.
Na manhã seguinte, envoltos pela magia da narrativa compartilhada por Seuci, uma onda de anseio surgiu entre os parentes e, assim como haviam desejado em tempos passados, todos pediram para que Jurupari assumisse a liderança da aldeia. Contudo, um dilema ainda persistia: precisavam da pedra lunar, pois apesar de ser um adolescente, Jurupari ainda era jovem para ser eleito cacique e precisavam da aprovação dos divinos celestes.
A rocha sagrada se mantinha perdida nas distantes encostas da serra da Lua, inatingível para os meros humanos. O desejo coletivo pela liderança de Jurupari enfrentava essa mesma barreira, que parecia intransponível, e por isso pensaram que era melhor esperar até que o rapaz amadurecesse e não mais precisassem de aprovação alguma.
Jurupari, sempre sagaz, considerou aquela oportunidade como rara e passageira. Ele sabia que não era mais o menino inocente e pacífico que seus parentes se lembravam e temia que seu caráter se revelasse antes que tivesse a oportunidade de ocupar o cargo de cacique. Não poderia deixar essa chance escapar de suas mãos sem lutar por ela.
Apesar de jovem, Jurupari tinha mais sabedoria do que muitas pessoas iriam conseguir durante toda uma vida. Ele então, considerou uma abordagem alternativa para conquistar a pedra da lua e concretizar seu plano, contudo, para isso, precisava do abrigo da solidão e do silêncio.
Pacientemente aguardou que a noite envolvesse todos em seus braços escuros e, com passos silenciosos, dirigiu-se à sua residência antiga, erguida no pico da montanha. Nas mãos, carregava consigo um saco de couro com objetos ocultos e ingredientes especiais.
Ao atingir o sítio, retirou uma panela de barro da antiga cozinha e, sob a luz tênue da lua, aqueceu-a numa pequena fogueira improvisada. Colocou certa quantidade de cada ingrediente, formando um líquido espesso que agitava-se agressivo; enquanto o caldo fervia, Jurupari, com sua voz mansa e determinada, recitava:
Na selva densa, onde o vento sussurra,
O feitiço antigo, a magia que perdura.
Invoco as forças, os espíritos da mata,
Onde o eco ressoa, a natureza se retrata.
Com palavras ancestrais, em tom sereno,
Desperto o encanto do segredo ameno.
Na dança das folhas, no murmúrio do riacho,
Os animais se unem, o feitiço é o laço.
A coruja majestosa, com olhar aguçado,
Manifesta-se sábia, pelo ar enrolado.
Elas estão na sombra a se esconder,
Esperando ver a natureza a florescer.
As asas do morcego cortam os céus abertos,
Os papagaios surgem, voando para os cantos desertos.
Araras dançam, em cores a brilhar,
Vem o falcão, com seu espírito protetor encantar.
No feitiço, a união se faz forte,
Que surja agora a águia mensageira da vida e da sorte.
Na teia da natureza, entrelaçados todos estão,
Com essas palavras revelo o poder e a conexão.
Que este feitiço ecoe pelos ventos da história,
O poder indígena, a magia da memória.
Manifestação de animais, em versos a bailar,
No livro da vida, para sempre irão brilhar.
De dentro do panela, erguidos em redemoinhos no ar, morcegos e corujas desdobraram suas asas sombrias. À medida que o líquido na panela atingiu o ponto de fervura novamente, surgiram, radiantes, periquitos, araras e papagaios, numa explosão de cores e plumagens. Submetido a uma terceira e vigorosa fervura, o caldeirão desvendou majestosos falcões menores e uma gigante águia imponente.
O último ser alado a emergir da substância da criação, a águia, revelava-se divina em toda sua grandiosidade. Suas asas tinham a dimensão de árvores ancestrais e reluziam como estrelas cintilantes; seus olhos, orbes de sabedoria, perscrutavam os segredos ocultos do universo. O animal pairou em frente a Jurupari, reconhecendo-o como mestre. O rapaz, acariciou a águia como quem afagava uma velha amiga, subiu em suas costas e alçou voo rumo à serra da Lua.
As correntes de ar tremiam em expectativa, enquanto eles voavam pelos vales e montanhas, rumo ao santuário celeste. Ao chegarem ao astro noturno, Jurupari vislumbrou a Lua, soberana em seu trono de prata, segurando com graciosidade a pedra dos chefes em uma mão e, na outra, um adorno de plumas que agitava-se suavemente com a brisa da órbita lunar. Jurupari, diante da paisagem celestial, sentiu-se integrado ao esplendor que se desdobrava ao seu redor.
Observando o homem em sua morada, a Lua, senhora de conhecimento futuro e infinito, compreendeu que era ele quem ela esperava. Silenciosamente, aproximou-se de Jurupari, encaixando na testa do rapaz um cocar carregado de significados místicos. Nas mãos do rapaz, ela depositou cuidadosamente a pedra dos chefes.
Com esse presente celestial, Jurupari, havia sido abençoado para trilhar o seu destino. Agachou-se emocionado diante da deusa e a agradeceu sinceramente. Em seguida, sob o olhar benevolente da Lua, Jurupari subiu em sua águia e alçou voo rumo à aldeia, pronto para assumir o papel de líder do seu povo.
Ao chegar ao topo do pico, Jurupari deu ordem de liberdade para a águia, que lançou-se no céu rumo ao desconhecido. Ele sentou-se no chão e ficou parado, admirando aquela pedra magnífica e poderosa. O objeto emitia uma luz violeta e brilhava mais intensamente do que ouro ou diamante; e mesmo sendo pequena, tinha o peso de uma rocha imensa e Jurupari, com toda a sua força, sentia certo cansaço ao segurá-la.
Já era manhã quando ele chegou à aldeia, resplandecente com os novos adereços que cintilavam pelo corpo. Os parentes foram arrebatados pela maravilhosa pedra e sentiram em seu âmago que haviam feito a escolha certa ao eleger Jurupari para cuidar deles.
Jurupari acomodou a pedra em seu cocar lunar, tornando-se, oficialmente, o líder mais poderoso da floresta. A comunidade se uniu em celebração pela conquista e, felizes por aquela bênção, dançaram alegres.
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CESARINO, Pedro; VICENTE, Zé (ilustrador). Histórias Indígenas dos Tempos Antigos, p. 35. 1ª ed. São Paulo: Claro Enigma, 2015.