Por Fernanda Rettore
Iara, a Mãe D’água, conferiu brânquias e nadadeiras ao recém-nascido resgatado. No início, o alimentou com nutrientes oriundos do seu próprio corpo de sereia, que, por instinto materno, produziu um leite espesso e gosmento. Nas primeiras horas do dia, sentava-se na pedra com o bebê em seus braços e o embalava com a mesma ternura com que as ondas leves acariciavam a margem.
Apesar de toda a atenção e cuidado que Iara dedicava ao recém-nascido, ele sentia dentro de si uma falta inexplicável. Os momentos ensolarados do raiar do dia eram os únicos que o acalmavam; nos demais instantes, ele chorava descontrolavelmente. O som de seu pranto fazia-se ouvir dia e noite, em lamento de saudade por uma mãe humana que ele nunca conheceu.
As águas murmurantes ecoavam a tristeza da criança, num choro que ultrapassava os limites da lagoa, permeava a floresta e se projetava na pequena aldeia, onde a mulher que lhe deu origem ainda residia. Os gritos estridentes incomodavam todos os habitantes locais, mas nela provocam um efeito ainda mais devastador: os olhos vazios e inquietos, a expressão sombria, o caminhar em círculos, o balançar das mãos e a pronúncia de palavras ininteligíveis, tornaram-se seu novo normal.
Mergulhada em uma realidade distorcida, ela passou a colecionar penas de pássaros, folhas secas e pequenas pedras, convencida de que esses objetos poderiam acalmar o espírito da criança que a atormentava. Em dias mais calmos, ela agarrava punhados de terra molhada, esfregando-a em seu corpo numa tentativa de desfazer a conexão dolorosa com o choro, mas o pranto incessante penetrava sua mente e a acompanhava aonde quer que fosse.
A jovem moça, outrora respeitada pela família e pela aldeia, tornou-se uma figura temida, da qual mantinham distância em busca de evitar as histórias sobre a suposta maldição da Mãe D’água. Mas seu delírio nenhuma ligação tinha com Iara, que planejava outro tipo de vingança contra a mulher assassina.
À medida que a sereia cuidava do recém-nascido, seu amor pela pequena criatura se fortaleceu junto à indignação por vê-lo sofrer. Ela fez, então, torrentes de água se unirem ao seu poder, e a natureza enfurecida rompeu os limites pré estabelecidos; a ira transbordou a lagoa em enchentes que varreram tudo em seu caminho; inundou campos e plantações, ruas e casas, comércios e igrejas. A paisagem interiorana, antes vibrante, era agora apenas um pedaço de civilização afogada pelos erros de uma mulher.
Na dualidade entre o amor materno de Iara e a vontade latente por uma identidade humana, a criança crescia fluindo pela harmonia e desarmonia da complexidade das emoções que permeavam sua alma. Com o passar dos anos, o menino desenvolveu incríveis habilidades aquáticas, mas, apesar disso, sentia estranha afinidade com o mundo externo às águas e possuía um inato desejo de viver na mata — mesmo sem nunca ter experimentado tal realidade.
Ao final dos dias, emergia das profundezas da lagoa para revitalizar seu corpo com as cores do crepúsculo ao som dos pássaros se despedindo do sol; durante as noites, deitado sobre uma pedra solitária entre as águas, experimentava os efeitos serenos da lua e do céu estrelado; cada momento compartilhado na superfície era um convite para ser completamente humano.
Décadas avançaram a fio, mas o desejo silente não abandonou o, agora, rapaz; consciente da ambiguidade de sua existência, aproximou-se da Mãe D’água e expressou sua vontade. Iara não compreendia os motivos do filho, os humanos eram uma raça desprezível — ela sempre o alertava; vivendo da maneira em que fora abençoado pela sereia, ele podia respirar nos dois mundos, admirar as belezas marinhas e terrestres e envelhecer de maneira especial.
Apesar disso, Iara amava o filho demais para não realizar seu sonho; com tristeza silenciosa, concedeu a ele a possibilidade de ser humano, sem brânquias e nadadeiras para lhe recordar seu destino, durante a maior parte do dia; mas cada jornada seria uma vida completa: ao amanhecer ele saia da lagoa na idade infantil, durante a tarde alcançaria a juventude, depois do pôr-do-sol se transfiguraria num homem maduro e no auge da noite seria um idoso; por regra do encantamento, precisava voltar para a lagoa sempre que seu corpo alcançasse a velhice ou morreria.
As emoções do rapaz contrastavam com as de sua mãe sereia, ele era puro entusiasmo e alegria. Nos primeiros dias de liberdade condicional, pôs-se a explorar o vilarejo que se formara novamente à margem do lago. À medida que o sol se espreitava através da densa vegetação, os raios solares cintilavam sobre a poeira dourada da comunidade. As casas modestas se aninhavam entre as árvores altas, com suas fachadas simples e gastas, adornadas com desenhos de rica herança cultural.
A magia da floresta se desdobrava em uma sinfonia de cores, formas, aromas e sons que hipnotizavam seus sentidos humanos; a selva abrigava criaturas misteriosas, tão diferentes das quais estava acostumado, cuja comunicação primitiva se intercalava com o eco distante das tradicionais canções indígenas.
Ele logo se acostumou com a vida pulsante da comunidade, que se desenrolava ao ritmo da terra. Não demorou para que a velhice e o ritual de voltar para a lagoa todas as noites se tornasse inconveniente; assistir o cotidiano humano já não era bastante, queria viver as próprias experiências assim como seus semelhantes; passou, então, a desejar obsessivamente ser um homem comum, que deveria envelhecer de acordo com o tempo e morrer quando chegasse sua hora.
Implorou para que Iara fizesse dele um animal ordinário, mas nem os poderes da sereia eram livres de condições: para quebrar o encantamento e se livrar das necessidades hídricas, precisava encontrar uma mulher que se apaixonasse por ele, o abraçasse, beijasse e derramasse água sagrada sobre o topo de sua cabeça.
Preso na tentativa de eximir-se do ciclo de existência peculiar, ele deixou de se esconder na mata e passou a vagar desesperadamente pelas margens da lagoa, em busca da mulher destinada a quebrar o encanto. Mas a presença do menino de cabelos vermelhos, do rapaz de barba ruiva e do velho grisalho, tornou-se fonte de mistério e medo para a comunidade, que pôs-se a evitar os locais das aparições. A ânsia por libertar-se das amarras aquáticas junto a falta de habilidade social, obscureceu as intenções do rapaz e logo o transformou numa lenda fantasmagórica.
Apesar de seu apelo, Barba-Ruiva — como ficou conhecido — carregava em si o fardo de uma existência que transcendia a compreensão humana. Cada vez mais isolado e aflito, começou a perseguir as mulheres com urgência, que corriam assustadas com a tenacidade inexplicável daquele homem sombrio. Nas noites melancólicas, ele retornava para as profundezas fluviais em prol do rejuvenescimento, para na manhã seguinte voltar a percorrer solitário às margens da lagoa num encalço incessante pela dama corajosa, que entenderia a complexa dualidade de seu ser e lhe concederia a redenção.
Leia a primeira parte aqui
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CASCUDO, Luiz da Câmara. Lendas brasileiras para jovens. 2. ed. São Paulo: Global, 2010. 24-27 p.