Por Fernanda Rettore

A aurora despertou sem denunciar o acontecimento. O sol emergiu — resplandecente e vibrante — e os pássaros cantavam em festa por isso. O evento da não-interrupção dos processos da natureza diante das vicissitudes pessoais, é sempre curioso. Existe algo no âmago humano que deseja que o tempo estagne e só retome seu curso após a descoberta de uma solução. Mas, não sendo tão importantes, o mundo continua a girar, a rotacionar e a translatar, mesmo diante do mais profundo sofrimento humano. 

Nessa jornada, o enigma persistia. As mulheres, mesmo com esforços desesperados, não conseguiram encontrar respostas. Buscaram na medicina e na espiritualidade uma alternativa para reverter a mazela: cantaram, oraram e elaboraram remédios complexos. Ainda assim, os homens permaneciam em estado de coma. 

Numa tarde que se desenhava como qualquer outra, todos seguiam suas atividades diárias quando, de súbito, os homens desabaram sem forças ao chão. Gritos agudos e choros compulsivos narraram os minutos seguintes. Com esforço, elas os carregaram para o interior de uma cabana, acomodando-os sobre esteiras de palha. Desde então, o estado físico dos homens deteriorava-se a cada dia, com o gradual enfraquecimento de suas respirações.

Diante dessa situação, começaram a circular conversas sobre a eventual morte de todos os homens. A ausência deles, além de causar profunda melancolia nas esposas, filhas e mães, também suscitava preocupações quanto às responsabilidades diárias na aldeia. Sem a presença deles para proteger o território e caçar, a apreensão da extinção de toda a comunidade, manifestou-se; e uma sombra de incerteza sobre o futuro pairou insistente. 

Depois de inúmeras tentativas infrutíferas, optaram por se dirigir ao lago sagrado de Ceuci. As lendas contavam que a deusa, o próprio espírito da constelação de Plêiades, banhava-se nele nas noites de lua cheia. Nutriam esperança de encontrá-la e suplicar por sua intervenção salvadora. Ceuci, renomada por resguardar as plantações e garantir alimento, certamente não deixaria as mulheres desamparadas.

Antes de partirem, ergueram uma cerca ao redor da cabana onde os homens estavam adormecidos, armaram armadilhas para afastar animais selvagens e espalharam oferendas aos espíritos protetores por todo o perímetro da aldeia. Com os preparativos concluídos, embarcaram na jornada.

Após dias de caminhada, chegaram ao misterioso lago. Olharam entre si com decepção. Águas turvas e lodo cobriam toda sua extensão, enquanto galhos quebrados, pedregulhos e ossadas de animais decoravam a margem. Por um breve instante, houve um debate sobre a precisão da localização, mas a conclusão foi unânime: não havia outro lago naquela direção, só poderia ser aquele. Em meio aos escombros e a areia suja, montaram acampamento.

Sob a luz da lua cheia, acenderam a fogueira e organizaram os preparativos. Em pouco tempo, os cantos e danças do toré preencheram o ambiente. A atmosfera de invocação entrelaçava-se ao aroma das ervas queimadas, propiciando a chegada do espírito de Ceuci. 

Conforme o ritual se desdobrava, o lago escuro foi tomado por uma corrente de água cristalina que rapidamente dominou toda a amplitude. Em sua superfície, vitórias-régias gigantes — enfeitadas com flores rosas da mesma proporção — se manifestaram, adornando-o com majestosidade. A luz da lua, que brilhava com uma intensidade solar, era refletida no líquido incolor, fazendo um vapor quente emergir dali. 

As mulheres, alheias aos acontecimentos que se desenrolavam próximos, só perceberam a magia quando a água quente tocou seus pés. Subitamente, a música cessou e um silêncio pesado se instalou. Em algum recanto de suas consciências, ressoava o antigo conhecimento: Ceuci desaprovava a presença humana em suas águas. No entanto, envoltas pela elusiva vibração, jogaram-se na água translúcida, rindo e banhando seus corpos. 

De repente, uma voz estranha exclamou com veemência:

— Este lago pertence à deusa Ceuci! Não é para humanos!

As mulheres, então, despertaram do transe e, envergonhadas, saíram rapidamente de dentro do lago — que agora já havia se transfigurado à sua forma original. Reconheceram o ancião como pajé pelos adornos, mas jamais o haviam visto. Antes que pudessem reagir, ele continuou:

— Agora vocês contaminaram o lago com suas impurezas e Ceuci não mais descerá aqui!

Os olhares constrangidos e os ombros baixos não foram suficientes para silenciar o homem:

— Estou certo de que não consultaram o pajé de seu povo! Agora, saiam daqui e voltem para suas casas!

O peso da culpa pairou sobre as mulheres e, com os olhos cerrados em lágrimas, deixaram o local com a sensação de fracasso.

Após elas se retirarem assustadas com a reprimenda do ancião, ele soltou uma risada abafada. Em seguida, dirigiu-se ao cume da serra, onde existia outro lago. Ao mergulhar nele, as águas transformam-se em leite e do líquido nevado emergiu um homem jovem de expressão misteriosa.

O velho pajé, era na verdade um aprendiz de feitiçaria que se mascarou como ancião. Ele estava se preparando há vários anos para executar um complexo encanto. O sucesso nessa missão indicaria se ele estava pronto para avançar para a próxima fase de seus estudos ou não.

Nos dias subsequentes, os homens permaneceram desacordados e as mulheres experimentaram um estranho mal estar. Acreditavam que estavam sendo punidas pelos deuses e aguardavam o momento em que também cairiam desfalecidas no chão. 

Entretanto, em vez de entrarem em coma, seus ventres projetaram-se para frente, revelando gravidezes inesperadas. Conversaram entre si, concluindo que as gestações eram obra da deusa Ceuci, que devido ao erro que cometeram durante o ritual, ao entrarem nas águas sagradas, invocou a fertilidade nelas.

Não suspeitavam que o pai de seus filhos era, na verdade, aquele que conheceram como um pajé idoso. O mago havia tornado o próprio corpo invisível e envenenado os homens da aldeia, deixando-os inconscientes. No momento certo, sussurrou nos ouvidos das mulheres a ideia de recorrerem a Ceuci, fez com que se perdessem no caminho até o lago sagrado e as ludibriou para se banharem no açude sujo; e, por meio da água, as fertilizou.

Poucos dias após as gestações serem comprovadas, o feiticeiro fez com que os homens despertassem. Apesar da hibernação, acordaram fortes e saudáveis, entretanto não se lembraram do que havia acontecido nos dias anteriores ao coma. As mulheres, com medo de serem desacreditadas e repreendidas, aproveitaram-se da amnésia masculina e afirmaram que eles haviam as fecundado durante um ritual para a deusa Ceuci e depois caíram em sono profundo. 

Famintos, não questionaram a veracidade da teoria, queriam apenas se alimentar. Juntos foram à caça e, naquela mesma noite, sob o tapete de estrelas, acenderam uma grande fogueira e assaram muita carne numa celebração em que todos participaram. 

Com o passar dos meses, o que havia começado como um pesadelo, teve um alegre desfecho: as mulheres deram à luz a crianças perfeitas. Todas concordavam que os bebês compartilhavam de distinta beleza e inteligência. Antes da idade esperada, desenvolveram notáveis habilidades manuais, dons de oratória, perspicácia na agricultura e sensibilidade espiritual — além de uma personalidade de singular carisma. 

Novamente, às graças foram atribuídas à Ceuci. Em função disso, uma das mães decidiu homenagear a deusa chamando sua filha de Seuci. A menina possuía uma beleza celeste: seus longos cabelos eram sedosos, os olhos eram delicados e profundos, as maçãs do rosto eram salientes e a boca tinha o formato de coração. Sua inteligência também se destacava, ainda criança esculpia brinquedos inéditos na madeira e na idade adulta era reconhecida por construir complexas casas.  

Numa tarde de verão, Seuci descansava debaixo de uma árvore, cuja copa grande projetava uma sombra fresca. Sentiu, então, uma estranha fome doer seu estômago e adentrou a floresta em busca de alimento. 

Não muito distante, encontrou uma árvore de curura gigante. Apesar do espécime atingir cerca de 20 metros, Seuci o escalou com habilidade sobrenatural. Deitou-se em um largo galho e apoiou um cacho da fruta sobre o ventre. De olhos fechados, deliciou-se com o sabor irresistível, deixando o caldo escorrer voluptuosamente por seu corpo.

Na manhã seguinte, Seuci experimentou uma sensação peculiar. Inicialmente, atribuiu-a a uma possível indigestão causada pelo excesso de fruta, porém, semanas se passaram e os sintomas persistiram. 

Seuci, percebendo que seu ventre gradualmente aumentava, compartilhou sua preocupação com a mãe. A velha mulher, imediatamente percebendo que a filha estava grávida, surpreendeu-se com o fato de que ela havia engravidado com a mesma peculiaridade com a qual havia sido concebida. O fato ainda mais extraordinário era que Seuci era virgem. 

Sua mãe, que acreditava que a moça era filha da deusa — assim como as outras crianças da mesma geração — creia que Seuci possuía poderes misteriosos. Após saber que o mal estar da filha havia começado após ingestão da fruta do curura, concluiu que ela havia sido fecundada pelo seu caldo. 

Como era de se esperar, Seuci teve uma doce gestação e deu à luz a um menino gordo e esperto. A criança foi chamada de Jurupari, que significa “aquele que foi gerado pelas frutas”.

Fonte: CESARINO, Pedro; VICENTE, Zé (ilustrador). Histórias Indígenas dos Tempos Antigos. 1ª ed. São Paulo: Claro Enigma, 2015.

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