Por Fernanda Rettore
Um arrepio sinistro serpenteou por todo o corpo de Maria, cujas convicções céticas se desfizeram diante da figura sombria e inexplicável. Enquanto isso, Pedro, visivelmente agitado, agarrou a espingarda e a apontou para o mato que se movia — mas ele não enxergava Caipora. João, permanecia concentrado em se acalmar, respirando fundo e devagar, também alheio à presença assustadora que aterrorizava Maria.
— Vamos embora!? — gritou Pedro, mais alto do que gostaria, buscando no rosto dos irmãos algo como um incentivo ou uma autorização, para correr em disparada daquele local.
Maria fechou os olhos e respirou fundo, lutando contra a própria visão, que ameaçava fazê-la aceitar completamente o que havia acabado de testemunhar. Sentiu-se um pouco mais no controle, relaxou os olhos e começou a abri-los devagar, mas o pequeno pedaço de mundo que enxergou revelou-se terrível e a fez abrir os olhos com força. Caipora estava parada em pé ao seu lado, com o rosto muito próximo ao seu, atingindo a mesma altura de Maria sentada. Seus olhares ficaram presos como um rio veloz, num silêncio perturbador que intimidava Maria dolorosamente. Caipora retirou o chicote de sua cintura, ergueu-o na altura do nariz da moça — exibindo a arma com crueldade — e, lentamente, deixou-o se abrir até tocar o chão; de repente, num movimento rápido e repentino, Caipora puxou o chicote para trás das costas e estendeu o braço em direção ao rosto de Maria. A moça gritou, premeditando o ardor da chicotada, mas, ao invés disso, Caipora desapareceu e um som de impacto contra a madeira ressoou pelo ar; seis batidas vigorosas foram ouvidas, ecoando pelo campo. Diante dos olhos atômicos dos irmãos, a árvore onde estava pendurada a colmeia se despedaçou no chão, produzindo um estrondo ensurdecedor. Taparam os ouvidos com as mãos e esconderam os rostos entre as pernas, agachados em estado de choque. Olhares trocados revelavam a confusão mental que os dominava, mas nenhum deles encontrava coragem para dar voz aos pensamentos sombrios. Então João, obedecendo ao instinto de liderar e proteger os irmãos mais novos, proclamou firme:
— Caipora, você está aqui?! — Instantaneamente, as plantas ao redor voltaram a se agitar, movidas pela mesma presença invisível.
— Estou aqui! — uma voz rouca, que parecia estar muito próxima deles, respondeu surpreendendo a todos.
Os três ouviram a resposta de Caipora, mas apenas Maria era capaz de vislumbrá-la: os olhos brancos e fantasmagóricos, fixos em sua direção. O coração de Maria pulsava com dificuldade, assim como sua respiração, que falhava e a prendia num transe paralisante. Em lágrimas, Pedro soltou a espingarda e colocou-se a rezar a oração de Nossa Senhora da Abadia, sua santa protetora. João, com valentia e respeito, continuou a dialogar com o espírito:
— Caipora, pedimos sua permissão para part…
Antes que ele pudesse terminar a frase, no entanto, a voz rouca, e agora também grave e feroz, ressoou pelo ar.
— NÃÃÃÃO!!! — rugiu enfurecida.
Em seguida, Caipora golpeou as costas de Maria sem misericórdia, fazendo-a cair de bruços no chão. Com as mãos juntas contra o peito e os lábios sussurrando uma prece desesperada, Pedro implorava pelo auxílio divino. Mas as palavras cristãs irritaram Caipora ainda mais e, por isso, chicoteou as costas de Maria novamente, que respondeu com um grito de dor. João, aflito com o estado da irmã, cujo sangue já manchava a blusa, colocou-se de pé e numa tentativa de reconciliação com Caipora, expressou sua disposição em obedecer a vontade dos espíritos da floresta e desistir da caçada, rogando humildemente por permissão para retornarem em segurança para casa. Mas tais palavras não surtiram nenhum efeito na entidade protetora das matas, que evidenciou a recusa ao pedido dando outra chicotada em Maria.
Com as mãos trêmulas, Pedro retirou do bolso o pequeno cantil, que ainda contava com um restante de pinga; no entanto, seu nervosismo era tão intenso que ele apenas o entregou a João. Este, por sua vez, agarrou o objeto da mão do irmão e não hesitou em procurar freneticamente no entorno algum recipiente improvisado que pudesse conter a bebida. Após alguns instantes de busca ansiosa, finalmente encontrou uma rocha cujo centro desgastado serviria ao propósito; colocou a pedra entre eles e depositou o líquido ali, preparando-se para realizar a oferenda em meio ao turbilhão de emoções que o dominavam.
— Caipora, eu te ofereço esta cachaça. Por favor, nos livre de seus tormentos! Deixe-nos partir e liberte os cães! — suplicou João.
Assim que Caipora sentiu o aroma do destilado, desprendeu o olhar de Maria do dela e foi até a pedra para satisfazer seu desejo. A bebida desapareceu de uma só vez; Maria, a única capaz de enxergar o espírito, assistiu assustada a entidade beber todo o líquido com resignação. Caipora, de repente, se materializou de novo muito perto de Maria, observando o suor excessivo brotar do rosto da moça; com o hálito alcoólico, a entidade gritou:
— SAÍAM! VÃO EMBORA!
E um instante depois, Caipora retornou à escuridão, mas não sem antes desferir uma última chicotada em Maria, fazendo-a gemer de dor e deixando João e Pedro atordoados. Enquanto Maria se contorcia em agonia, Pedro continuava orando, sussurrando as preces com fervor; João, aliviado por Caipora ter os libertado, colocou o braço trêmulo da irmã em seu ombro e a ajudou a se levantar, ao mesmo tempo em que acalmava Pedro com afirmações positivas, “está tudo bem”, “essa odisséia chegou ao fim”, “vamos embora”. Atravessaram a mata e as alamedas, ainda muito abalados e confusos; chegaram em casa com uma energia pesada pairando em suas auras, surpreendendo os pais com as feridas de Maria e com os detalhes assombrosos do castigo de Caipora.
Quando foi na manhã seguinte, os cães ainda não haviam retornado à fazenda. Preocupado, o pai dos três irmãos fez o mesmo caminho relatado pelos filhos na noite anterior, mas ele não encontrou os animais, ao invés disso, deparou-se com as colmeias cortadas no chão e repletas de mel. Chegou à fazenda com as duas grandes colmeias em seus braços, impressionando a todos, principalmente João, Pedro e Maria, que no dia anterior haviam visto as colmeias secas. Os cães só retornaram à fazenda mais tarde, deixando para trás vivências misteriosas que os humanos nunca saberão.
A experiência deixou uma marca indelével no caráter dos três irmãos, especialmente em Maria que, outrora descrente da existência e do poder dos espíritos da mata, se tornou uma das maiores defensoras da autoridade de Caipora; João, manteve seu respeito pela entidade evitando mencionar seu nome em vão; já Pedro, abandonou de vez a prática de caminhar pela mata à noite, temendo aqueles que habitam as profundezas escuras da floresta. O silêncio noturno característico da fazenda, era às vezes cortado pelo assobio de Caipora, lembrando os irmãos da aventura sinistra.
FONTES:
youtube.com/watch?v=hg0yHfbzYxY
youtube.com/watch?v=Eco6cLyymHY