Foto: Diego Pellizari
Na noite desta última sexta-feira, dia 3 de janeiro, quatro indígenas Avá-Guarani, sendo uma criança, um adolescente e dois adultos, foram baleados durante um ataque em uma área de disputa de terras em Guaíra, no oeste do Paraná. A comunidade indígena Yvy Okaju, que está localizada a 5 km do centro da cidade e da sede da Polícia Federal (PF), foi atacada a tiros de surpresa por pistoleiros na região entre Guaíra e Terra Roxa. Os Avá-Guarani estão em constante ameaça e são vítimas de atos de violência desde o fim de dezembro de 2024. Lideranças indígenas apontam que as discussões sobre o marco temporal, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é usada como justificativa para os atos contra os povos originários. Em dezembro de 2023, o Congresso aprovou o PL instituindo o marco temporal, contrariando os princípios constitucionais que balizaram a decisão do STF em setembro de 2023, quando já havia enterrado a tese, por 9×2, ao instituir uma jurisprudência favorável aos indígenas
Após serem cercados por homens armados, uma criança de 7 anos, um adolescente de 14 anos e outros dois indígenas de 25 e 28 anos foram atingidos e levados para o Hospital Bom Jesus de Toledo. Durante os ataques, a criança foi ferida na perna. Um indígena foi baleado nas costas, um dos membros foi atingido na perna e o outro teve o maxilar perfurado por um tiro. De acordo com o último boletim médico, a criança e o adolescente receberam alta hospitalar, já os dois adultos feridos continuam internados em estado grave.
Indígenas divulgam imagem de criança ferida em conflito em Guaíra – Foto: Comissão Guarani Yvyrupa – CGYI
A região oeste do Paraná, onde ocorreram os atos de violência, é conhecida por ter um histórico de conflitos por demarcação de terras. Este já é o quarto ataque em sete dias. Os indígenas informaram que os pistoleiros chegaram à comunidade por uma estrada que, naquele momento, não estava sendo monitorada pela Força Nacional. Desde novembro, por determinação do Ministério da Justiça, a responsabilidade pela segurança dos indígenas é da força federal. Por outro lado, segundo denúncias de lideranças indígenas, desde o final de dezembro de 2024, o território tem sido alvo de ações violentas que resultaram em uma indígena queimada no pescoço, no dia 30, e um indígena baleado no braço, no dia 31.
Indígenas baleados neste último ataque, na sexta-feira, dia 3 de janeiro, no Paraná – Foto: CIMI/ Divulgação
Nos últimos ataques, duas casas e plantações foram incendiadas, além de disparos de armas de fogo, os pistoleiros também lançaram bombas contra o tekoha Yvy Okaju. Na segunda-feira (30), um dia após um dos ataques, a Polícia Federal esteve no local e recolheu pelo menos 13 cápsulas de munição de calibre 38. De acordo com líderes indígenas, estes ataques têm sido motivados pela falta da demarcação de terras no local, devido a espera de uma decisão final da Justiça, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) discute sobre a demarcação de terras indígenas, mesmo após o próprio STF ter declarado a inconstitucionalidade do marco temporal em 2023.
Segundo indígenas, casa na aldeia foi incendiada em ataque no dia 31 de dezembro – Foto: Comissão Guarani Yvyrupa – CGY
Diante do aumento da violência contra os povos originários, o Ministério da Justiça e Segurança Pública pediu o aumento de 50% no efetivo da Força Nacional de Segurança Pública que opera na Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, situada entre os municípios de Guaíra e Terra Roxa, no Oeste do Paraná. O órgão informou que a medida ajudou a restabelecer a ordem na região e que ações estão sendo tomadas para prevenir novos conflitos. De acordo com o Ministério, a Polícia Federal iniciou uma investigação para identificar os responsáveis pelos disparos. Diante do risco de novos ataques, equipes de prontidão e de sobreaviso foram mobilizadas para reforçar o patrulhamento na área.
O Ministério da Justiça aumentou o efetivo da Força Nacional em Guaíra, no oeste do Paraná, em meio à escalada da violência na região – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Vidas indígenas dependem de demarcação urgente
A Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, localizada nos municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia, no Paraná, possui 24 mil hectares. Após a delimitação pela Funai, o processo de demarcação foi interrompido por uma ação das prefeituras de Guaíra e Terra Roxa, que foi aceita em primeira instância pela Justiça Federal. A continuidade da regularização do território depende, agora, de uma decisão final da Justiça nas instâncias superiores.
No entanto, essa decisão está suspensa até que o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifeste sobre o marco temporal. Essa tese defende que apenas as terras ocupadas por indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, podem ser demarcadas. Enquanto os povos indígenas esperam o reconhecimento de seus direitos e pelas suas terras originárias, as aldeias seguem em constante ameaça e com vidas em risco, uma vez que os pistoleiros se aproveitam da justificativa do marco temporal e se acham no direito de disputar por terras com violência, sem poupar nem mesmo as crianças indígenas, como ocorreu neste último ataque no Paraná.
Crianças indígenas do Paraná manifestam contra o marco temporal – Foto: Cacique Fernando Lopes, Tekoha Pyahu
A inconstitucionalidade do marco temporal
Em 2023, o STF decidiu derrubar a tese do marco temporal com um placar de 9 a 2 em favor dos povos indígenas. Limitar os direitos dos povos indígenas à data da promulgação da Constituição de 88 é uma agressão aos povos originários e uma ilegalidade constitucional, por isso o STF não aceitou esta tese do marco temporal.
Em dezembro de 2023, o Congresso Nacional aprovou um Projeto de Lei que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, contrariando a decisão do STF tomada em setembro do mesmo ano. Nessa decisão, o STF deu ganho de causa ao povo Xokleng, de José Boiteux, em Santa Catarina, em um caso contra o Estado que queria retomar uma área indígena.
O STF, ao decidir a favor dos Xokleng, o STF reconheceu que as terras pertencem aos povos indígenas por sua história e ancestralidade, sem a necessidade de um marco temporal. Logo, a decisão do STF foi vista como uma derrota para a tese do marco temporal, pois deixou claro que os povos indígenas têm direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam, independentemente da data de ocupação.
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Apesar disso, o Congresso, ao aprovar o Projeto de Lei em dezembro, desconsiderou essa decisão do STF e tentou instituir o marco temporal por meio da legislação, o que ameaça os direitos territoriais dos povos indígenas. A Lei 14.701, sancionada em outubro de 2023, teve um veto parcial do presidente para se alinhar à decisão do STF, mas isso foi rejeitado pelo Congresso.
Em 22 de abril de 2024, o ministro Gilmar Mendes suspendeu os processos judiciais relacionados ao tema até que o STF tome uma decisão final. Contudo, essa suspensão não se aplica aos processos administrativos de demarcação de terras indígenas. A tensão entre os direitos indígenas e os proprietários de terras ainda é um assunto delicado e muito debatido no país.
Brasília (DF), 30/08/2023, Manifestação de Indígenas contra o marco temporal, na Esplanada dos Ministérios. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
De acordo com o próprio ministro Gilmar Mendes, a principal preocupação não seria a existência de um marco temporal, mas a criação de garantias jurídicas, como a rapidez na solução do processo, a saída dos ocupantes apenas após a indenização e o pagamento de valores compatíveis com o mercado. As discussões começaram em 5 de agosto e estavam previstas para durarem até o dia 18 de dezembro, mas, por decisão do ministro Mendes, a mesa de conciliação foi prorrogada para fevereiro de 2025.
Os ataques ao povo Avá-Guarani demonstram mais uma vez o quão prejudicial é a inconsistência de uma tese discutida há anos, e que já deveria ter sido encerrada com a definição do STF em 2023. Este processo moroso prejudica diretamente os indígenas brasileiros, que clamam por suas terras originárias e de direito, territórios ancestrais ocupados há muito tempo antes de 1500, quando os colonizadores chegaram ao Brasil. Este cenário moldado em incertezas coloca as vidas dos indígenas em risco, abre margem para atos de violência contra os povos originários e continua causando angústia para as aldeias de todo o país.